Os números são impressionantes: as demências e outras desordens mentais e comportamentais em Portugal já representaram em 2020 mais de 5% das mortes. O aumento da esperança de vida dos idosos é uma causa óbvia – para doenças que são particularmente fatais nos maiores de 85 anos –, mas o crescimento desde 2015 não parece apenas ser justificado por esse factor. Hábitos de vida, cada vez menor interacção social dos mais idosos e até o excessivo consumo de calmantes são também causas que explicam esse aumento. As mortes são, porém, a face visível de um problema ainda mais vasto: como manter a vida de um cada vez maior número de pessoas que necessita, de cuidados contínuos por estarem completamente dependentes?
A mortalidade devida a desordens mentais e comportamentais duplicou em Portugal em apenas cinco anos. De acordo com os dados do Eurostat, este grupo de doenças – que inclui dependência de drogas e álcool, mas não doenças como a de Parkinson e de Alzheimer, que são classificadas como doenças do sistema nervoso –, foi a causa de morte de 3.267 pessoas no ano de 2015, enquanto em 2020 atingiu os 6.422 óbitos.
Neste grupo, a demência – onde se insere a demência vascular por destruição de tecido cerebral – constitui o grosso das mortes e do incremento neste período, tendo passado de 3.076 óbitos em 2015 para 6.070 em 2020. Cerca de dois terços das pessoas falecidas tinham mais de 85 anos, e 99,4% mais de 65 anos.
Este incremento da letalidade nos últimos anos fez com que só as demências tenham ultrapassado o conjunto de todas as doenças do sistema nervoso, que incluem as doenças de Parkinson e de Alzheimer, bem como outras neuropatias, afecções e inflamações do sistema nervoso central.
Em 2015, este grande grupo de doenças tinha sido a causa de 3.751 óbitos (mais 675 do que as demências), tendo subido para 4.556 em 2020 (menos 1.514 do que as demências). Em 2020, a doença de Parkinson foi responsável por 1.276 óbitos, enquanto a doença de Alzheimer por 1.777, sendo que esta segunda mostra um perfil de estabilidade.
Nas desordens mentais e comportamentais encontram-se também as mortes directamente associadas ao consumo agudo de álcool e drogas, mas com peso comparativamente muito baixo.
Os dados do Eurostat – que apenas desde a semana passada integram dados de Portugal para 2020 – apontam para 114 óbitos causados por alcoolismo registados nesse ano, que é o valor mais elevado desde 2012. Em todo o caso, saliente-se que, neste aspecto, os valores de Portugal são relativamente baixos em relação a outros países europeus. Por exemplo, a Suécia – com a mesma população – registou 304 óbitos por alcoolismo em 2020, ligeiramente abaixo do registado no ano anterior. Na Alemanha, com cerca de oito vezes mais população do que Portugal, a mortalidade por distúrbios mentais associados ao alcoolismo foi de 44 vezes superior (5.046 óbitos).
Convém, no entanto, referir que estas diferenças podem dever-se a metodologias distintas de atribuição da causa principal do óbito.
Do ponto de vista epidemiológico, o peso relativo das desordens mentais e comportamentais têm estado a aumentar. Em 2015 representaram 3,0% da mortalidade total, enquanto em 2020 ascendeu aos 5,2%. Não existem ainda evidências de o aumento ter tido qualquer relação com a pandemia iniciada em 2020. De facto, apesar de este grupo de doenças ter registado um incremento em 2020 face a 2019 (mais 746 óbitos), existia já uma tendência de crescimento nos anos anteriores. Por exemplo, o aumento entre 2018 e 2019 fora de 803 óbitos.
A tendência de crescimento da mortalidade por este tipo de distúrbios é quase generalizada nos outros países europeus abrangidos pelo Eurostat, embora mais nuns do que em outros. Se se comparar os números de 2015 com 2020, na União Europeia apenas a Croácia (-6,0%) e a França (-0,1%) registaram ligeiros decréscimos, enquanto a Dinamarca (+0,8%), Espanha (+1,7%) e Holanda (+2,6%) registaram subidas.
Dos países da União Europeia com mais de três milhões de habitantes – excluindo-se assim Luxemburgo, Chipre, Malta e os três países bálticos –, Portugal é o terceiro que contabiliza um maior crescimento entre aqueles dois anos (+96,6%), apenas atrás da Grécia (+129,3%) e da Polónia (97,7%). O Eurostat ainda não recebeu os dados de 2020 da Itália e da Bélgica, mas confrontando os dados de 2019 é previsível que os incremento entre 2015 e 2020 seja mais modesto do que o de Portugal.
Este aumento extraordinário das mortes por distúrbios mentais e comportamentais em Portugal poderá ser explicado por uma maior acuidade na atribuição das causas de mortes e pelo processo de envelhecimento, mas existirão também eventuais efeitos adversos medicamentosos e também de estilos de vida.
Pio Abreu, psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra – e autor do best-seller Como tornar-se doente mental – destaca não apenas os hábitos de vida, com “os idosos cada vez mais isolados nas comunidades”, mas também o uso excessivo de certos medicamentos. “Começa a ser evidenciada uma associação entre o uso de calmantes e certas formas de demência”, salienta este especialista.
Pio Abreu considera, contudo, que estes números revelam um outro problema bastante grave que passa pela incapacidade do Estado e das instituições particulares de solidariedade social (IPSS) de darem resposta ao crescente número de pessoas com problemas de demência, incluindo aqui a doença de Alzheimer. “São situações de dependência total que obrigam a um acompanhamento contínuo, superior à de um bebé”, salienta, acrescentando que “o estatuto do cuidador informal tem de ser mais implementado”. “As pessoas que prestam cuidados a familiares com este tipo de doenças têm de ter um maior e melhor apoio”, diz.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, os vários tipos de demência – demência vascular, demência com corpos de Lewy, demência frontotemporal, demência decorrente de acidentes vasculares cerebrais e ainda por doença de Alzheimer – afectam cerca de 55 milhões de pessoas em todo o Mundo, sendo que mais de 60% vivem em países de baixa e média renda. Com o aumento da esperança média de vida, estima-se que esse número suba para os 78 milhões em 2030 e para 139 milhões em 2050.