No silêncio do crepúsculo ou no remanso do lusco-fusco, ouves o som que a tua terra faz?
Um silvo abafado de comboio na distância. Ventos contínuos de carros na auto-estrada. O sacudir de ferro do camião do lixo e os travões agudos de um autocarro.
Ou um avião, imenso, pesado, a contrariar a gravidade, devagarinho e tão depressa. Um estertor suave da vidraça na marquise que sente com o corpo da casa o movimento de um mundo de gente a sobrevoar.
Uma mota apressada a rasgar o frio em fúria?
Ou o sereno breu, uma toada de cão que ladra lá longe, a pressentir cheiros que o alarmaram. A fazer a quietude mais gorda, mais parada, em terra de um mundo que só gira porque vemos o sol nascer.
Na cidade descobri as máquinas que não dormem, milhares e milhares de máquinas que pulsam em cada cantinho de cada família. Máquinas de lavar, automóveis, portões de garagem, uma buzina, uma sirene. Um ronronar permanente. Será vida?
Na aldeia descobri chilreados, insectos que não descortino, zumbidos e o roçagar do próprio planeta a atravessar o vazio. Como movimentos do estômago dentro de mim.
Clic! Clic!
O mundo é feito de ruídos, e se fechamos os olhos eles crescem, tanto quando pedimos que falem mais baixo, para vermos melhor, enquanto procuramos um lugar de estacionamento.
Clic! Clic!
E então se a televisão estiver ligada, ai o barulho… Mas enquanto aquele barulho bolsa, sempre ouvimos menos as vozes dentro de nós. Ecos do que nos disseram, ou se calhar só ouvimos, ou talvez até só lemos. Ecos que nos caíram como pedras, e nós esmagados debaixo delas, um pé a tremer, um suspiro final.
Clic! Clic!
Ao meu lado, na borda da cama, com uma perna chegada a si num abraço, ela corta as unhas do pé direito alheada da minha irritação.
De frente para a televisão, de comando na mão, e com uma nuvem cinzenta e arreliada a sombrear o meu semblante, olho-a com alfinetadas de desdém ao ver uma unha rebelde saltar no ar para parte incerta:
— Precisas de estar a fazer isso agora?!
Clic! Clic!
— Nem consigo ouvir as notícias, e há um balão chinês por cima da América!
Levanta-se e sai, em silêncio descontraído e trocista do meu sistema nervoso, em aromas de sabonete e com o cabelo enrolado na toalha que já escorregava.
Afinal, que importa? São só barulhos.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.