“Parem tudo o que estão a fazer: temos jackpot!” Esta é a frase que imagino sair da boca de um editor-chefe numa redacção portuguesa poucos minutos depois de uma catástrofe. Depois, consoante o tamanho da desgraça, a máquina começa a funcionar sem pudor durante dias, semanas ou meses. Vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas, sem parança, sem limites, muitas vezes sem interesse.
O massacre é tal na exploração da dor e do sofrimento alheios que, a partir de certo momento, tudo nos parece igual, banalizamos a perda, já nem ligamos à morte. Contabilizamos números, especulamos sobre o que podemos e fazemos o sofrimento render de forma pornográfica.
O recente terramoto no sul da Turquia, junto à fronteira com a Síria, é uma calamidade de uma dimensão que me custa sequer a imaginar. Mais de seis mil edifícios colapsaram e, até ver, o número de vítimas mortais já ultrapassou a barreira dos nove mil. Ao fim de três dias ainda se procuram sobreviventes por debaixo de toneladas de betão.
Como espectador do fenómeno, há sem dúvida um par de informações que gostaria de perceber: a rapidez das forças de resgate para chegarem ao local; as condições geológicas daquela zona e o seu risco sísmico; em caso de ser uma área onde os sismos são comuns, o que tinha sido feito para preparar um cenário destes ao nível da construção e do resgate; que países estão a ajudar no terreno e como.
Sabendo de antemão que o sismo afectou cidades já de si massacradas por pobreza e guerra (uma delas, por exemplo, é Alepo, na Síria), também seria interessante saber de que forma a comunidade internacional se está a juntar para enviar ajuda financeira.
Bem sei que ninguém pediu tanques Leopard por aqueles lados, mas em princípio também vão precisar de uns trocos. Li algures que o regime talibã enviou 160 mil dólares. Se gente sem grande consideração pela vida, e mais pobres do que os afectados, conseguem fazer qualquer coisa, espero que a Ursula, o farol da liberdade e da solidariedade, possa fazer uma vaquinha em Bruxelas e enviar qualquer coisa mais substancial.
Apesar do interesse da notícia e dos seus desenvolvimentos, o que observo na comunicação social portuguesa, em especial nos canais de informação 24 horas, é uma repetição da estratégia do monotema, levando qualquer espectador à exaustão e ao desinteresse. São horas e horas de transmissão com comentários de gente que parece que está a ler nos búzios, histórias paralelas sem interesse nenhum, e a cada 10 horas lá aparece um facto que realmente conta ou um desenvolvimento da situação real. É preciso uma paciência de Jó para levar com intermináveis directos na esperança de perceber alguma coisa sobre o que está aquela gente a passar.
É um “remake” da covid-19, da Ucrânia, do Ronaldo, das cheias, dos emigrantes em Odemira, da TAP, da invasão dos apoiantes do Bolsonaro ou do Trump, dos incêndios, do Brexit, do funeral da rainha, dos bilhetes dos Coldplay… eu sei lá.
Quando é que começou esta moda do monotema?
Quando eu era miúdo só havia um canal (sim, meninos, a vida já foi bem melhor) e lembro-me que, enquanto gramava a pastilha dos desenhos checos do Vasco Granja só para ver a Pantera Cor-de-Rosa ou o Dartacão, ouvia notícias variadas e não tinha tempo para decorar nada. Hoje, com centenas de canais, todos parecem dizer o mesmo horas e horas a fio. Com melhores ou piores especialistas, técnicas menos ou mais apuradas na arte de encher chouriços, ou mesmo sem qualquer vergonha no que toca a rentabilizar o sofrimento humano, fico sempre com a sensação que, visto por quem alinha as notícias, quanto mais sangue, melhor.
Dei por mim a ouvir uma discussão sobre o “e se fosse cá?”, a propósito do terramoto turco. É algo muito português e que nos leva a ver o mundo pelo nosso umbigo. Precisamos muito de ter um pé em cada drama alheio, até para podermos estabelecer um novo caminho de medo, especular mais umas horas num estúdio de televisão e, se possível, criar uma realidade alternativa de ses, que vendam mais uns litros de sangue.
Nós somos o país que faz notícia de um cão de água português no jardim do Obama, e que fala de como seria se Putin chegasse a Lisboa, umas horas depois dos russos meterem os pés no Donbass. No terramoto do Japão ou no tsunami da Tailândia, imaginamos cenários semelhantes no Chiado ou no Tejo. Adoramos divagar. Somos um povo de poetas.
Um engenheiro civil português explicava a desgraça que acontecerá em Lisboa no próximo sismo de 1755, porque, nas palavras dele, os seus colegas são ligeiramente aldrabões, mal pagos e assinam obras sem grandes vistorias de segurança. Portanto, estamos no trilho para a catástrofe. Imagino que o homem saiba do que fala – quem sou eu para duvidar –, mas pergunto-me: de que forma é que isso nos ajuda a perceber o que está a acontecer na Turquia?
Noutra emissão, perguntava o pivot a uma das comentadoras que costuma falar da Ucrânia (deduzo que estejam com falta de pessoal), se a Turquia não iria apoiar menos algumas áreas afectadas onde a maioria era curda. Ou seja, deixar que o betão fizesse o trabalho por eles e chegar lá com os bombeiros daqui a duas semanas só para recolher os corpos.
Ora… este nível de pergunta já é ao nível da lama, mas o que se espera, verdadeiramente, que a comentadora de serviço faça para além de especular um bocado ou tentar inventar um lugar-comum qualquer que não soe tremendamente estúpido? Assim de repente, lembrei-me dos comentadores que juravam que o governo sueco, enquanto “matava” velhinhos com covid-19, estava a tentar poupar nas pensões de reforma…
Ouvi ainda discussões sobre a demora do Governo português a enviar ajuda, ou até entrevistas a bombeiros super-felizes e excitados com a hipótese de entrarem em acção porque, cito, “treinámos a vida toda para isto”. Dito a sorrir! Tudo serve para vender, a morte é um dano colateral.
Com uma montanha de cimento e ferro, restos de um prédio que desabara, e um homem lá em cima com uma rebarbadora a tentar libertar alguém, a jornalista pergunta a um especialista da GNR: “diga-nos, o que estamos a ver aqui?”. O homem, com esforço, passou os cinco minutos seguintes a explicar como são importantes as máquinas pesadas para levantar blocos de cimento. Não fosse alguém pensar que era trabalho para os Avengers ou até para o Godzilla.
Decididamente, não consigo perceber o interesse de encher horas de emissão com 0% de informação. Seja em que tema for. Não compreendo bem em que altura do desenvolvimento humano entrámos nesta estrada. Ao fim de dois dias desisti de acompanhar, porque simplesmente se tornou insuportável. Não consigo aturar mais 5 minutos de venda de sofrimento alheio em horário nobre, e acabo por procurar outras fontes, nomeadamente imprensa escrita, para compreender o que por ali vai acontecendo. Interessa-me perceber quantas pessoas vão encontrando com vida, já que é essa a informação essencial, sem ter de ouvir horas de emissão e discussões repetidas sobre o sexo dos anjos.
Era isso que imaginaria que um canal noticioso me daria: notícias. Curiosamente só ouvi o número de sobreviventes da boca do Erdogan – e este não é rapaz que eu costume confiar muito, mas, à falta de melhor, tenho de acreditar que já salvaram mais de oito mil pessoas. Fico contente por elas, e não consigo sequer sonhar aquilo pelo que passaram e o que lhes deve ir na cabeça neste momento.
Por fim, espero que a solidariedade apareça, em força, para turcos, curdos e sírios. Gente que, por aquelas paragens, já está habituada a sofrer, mesmo quando não é notícia.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.