Eu comecei a dizer “às vezes desobedeço…”, e ele respondia “não é às vezes, é sempre!”
Eu fazia uma pausa arreliada e respirava fundo, dizendo “…e às vezes respondo torto…”, e ele interrompia “não é às vezes, é sempre!”
Pensava eu que se não me conheces de lado nenhum, raisparta isto!…
“Vai em paz e que o senhor te acompanhe.”
E cismei eu, “não quero companhia, seu ranhoso, a fazer de mim mau diabo!”
Fui embora e cheguei a casa berrando a minha revolta “o padre era um estúpido! Nunca mais lá volto!” E a minha avó ria-se:
— Ainda agora chegaste da confissão e já estás a pecar!
O conjunto de pecados que uma criança inventa para brincar aos adultos é quase tão proporcional ao tamanho do mundo tal qual o vemos. Pequenino. E as portas são todas imensamente largas e altas.
Dependendo do quanto espigamos, talvez já possamos ver adultos sem nos ficarmos pelas pernas e, talvez, sintamos mais direito a levantar a cabeça e a cometer o pecado da insolência de pedir satisfações das regras arbitrárias que nos impõem.
Eu não sabia o que os adultos murmuravam baixinho de joelhos. Pensando que estavam a sibilar por entre os lábios como quem chama um gato, limitei-me a imitar.
As velhinhas no banco encantavam-se com o meu ar compungido e penitente, e gabavam à minha avó a minha dedicação à transcendência em tão tenra idade. Já a minha avó, ciente que eu estava a bichanar gatinhos imaginários, dava-me uma cotovelada e sussurrava “levanta-te estapunho! Que estás a fazer, rapariga?!”
Foi a primeira vez que reparei que imitar um comportamento sem o compreender a fundo era em si mesmo ilustrativo da minha imaturidade. E se havia coisa que eu estava investida em esconder era essa inocência. Pois essa inocência para mim era o que me mantinha grilhões de dependência, algo absolutamente intolerável para quem sonhava em receber correspondência endereçada a si.
O meu pai ironizava “hás-de receber estas cartas e veres que são contas para pagar e já não vais querer.”
— Não, não! Eu quero receber, porque se receber cartas para pagar é porque são coisas minhas que eu conquistei!
Claro que fui descobrindo que há quem discorde. Ainda hoje em dia me espanto que queiram pôr a unha no que eu paguei com o meu esforço. Como a rapariga da carteira em frente que, depois de cobiçar a minha linda lata de lápis de cor, todos virados com as letrinhas douradas para cima, sussurrou, com a colega do lado, “vamos dizer que não temos lápis e assim ela empresta-nos os dela!”
— Eu ouvi! E só por causa disso agora não vou emprestar!
A injustiça a borbulhar-me na voz! Também era facto que não tinha sido eu a conquistar literalmente os lápis, mas eram meus, conquistados pela resiliência de só responder torto às vezes e desobedecer pouco, para que me brindassem o conformismo com o prazer de ter lápis novos a pintar a folha.
— Olha que depois destes, não há outros! Vê se os estimas!
“Todos os animais são iguais, mas alguns, são mais iguais do que outros.”
Depois comecei a descobrir que afinal as injustiças eram permanentes. Actos divinos que não me tocava compreender, diziam. Enfureci-me com o adágio “Deus dá nozes a quem não tem dentes”. Como assim? Que absurdo! Então um homem tão inteligente, com visão panorâmica em tempo real de tudo o que se passa cá em baixo, e mesmo assim vai dar nozes a um desdentado sem pelo menos poder moer aquilo?! Isso é injusto e não faz sentido!
Ao menos fazia um bolinho.
Em vez disso manda um terramoto zurzir o mundo de quem já vive sem nada ou com muito pouco. Até nos vizinhos, sem unhas, nem dentes e as chamas a deflagrar, rasteiras, as casas a caírem e nada sobra.
Pomos o coração com quem não podemos acudir. E mesmo que nunca mais tenhamos voltado a uma igreja, rezamos, porque basta bichanar baixinho, um pensamento de fundo, que se tenta permanente, por todas as pessoas que sofrem longe, enquanto a nossa vida continua com visão panorâmica em tempo real.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.