O PÁGINA UM apresenta, em pré-publicação, o livro da autoria do jornalista esloveno Boštjan Videmšek (que entrevistámos em Novembro passado), editado pela Perspectiva, pertencente à jornalista Patrícia Fonseca, também directora do jornal Médio Tejo. A obra é constituída por um conjunto de 10 reportagens da Noruega à Bolívia e da Escócia à China, com fotografias de Matjaž Krivic e prefácio de Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. A editora oferece um desconto especial de 20% e portes CTT aos leitores do PÁGINA UM, de forma directa e sem qualquer contrapartida para o jornal. Basta enviar um e-mail para perspectiva.livros@gmail.com com referência ao PÁGINA UM e a indicação da morada de entrega.
Em várias ocasiões, prometi aos que me são mais próximos, tal como a mim mesmo, que as minhas botas de reportagem de guerra estavam arrumadas para sempre. Eu era um dos mais jovens jornalistas quando comecei. Quando senti que bastava, era um dos mais velhos.
Fui despojado de todas as ilusões e fiquei compreensivelmente confuso perante recorrentes tragédias sem sentido. Além das minhas ilusões, as guerras que cobri custaram-me vários amigos. Também ficou muito claro que já tinha usado todos os meus ‘cartões de saída da cadeia’, e ainda mais alguns.
“Basta”, repetia uma e outra vez, sobretudo devido à crescente desilusão com o poder da minha vocação.
Para mim, o jornalismo nunca foi apenas um trabalho. Quando comecei, aos 16 anos, era um estilo de vida – ou mesmo a própria vida. Isso fez com que fosse muito mais difícil para mim aceitar que o meu trabalho havia perdido rápida e irreparavelmente o seu valor numa sociedade que, aparentemente, não se importava de se afogar na sua própria loucura.
A ordem pós-factual que se impôs da noite para o dia é um sistema onde excêntricos como eu e os meus colegas de profissão são tolerados, na melhor das hipóteses. A ascensão das (anti) redes sociais, câmaras de eco de opiniões pré-mastigadas com base em zero competência, deu início a uma nova era que ainda não tem oficialmente um nome, mas está a ficar mais poderosa a cada milissegundo. A melhor descrição que encontro para este estado atual – e possivelmente final – da evolução da nossa espécie é “A Ditadura do Nada”.
Neste novo e cada vez mais poderoso reino, há pouco lugar para os jornalistas. E também, já agora, para os cientistas.
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Muitas das guerras que cobri nunca terminaram. Apenas ficaram dormentes, em rescaldo. A maioria – Iraque, Afeganistão, República Democrática do Congo, Síria, Líbia, Somália, Darfur – continuam a arder em fogo lento até hoje, e as suas brasas vão-se espalhando e provocando regularmente explosões de violência nunca antes imagináveis. Nas ainda resplandecentes cidades do Ocidente, os refugiados que essas guerras provocaram são cada vez mais vistos e tratados como lixo nuclear.
A sociedade aberta e livre que sonhámos na Europa, e pensámos ter como herança segura para as gerações futuras, está agora repleta de muros, torres de vigia, arame farpado e insígnias paramilitares que exalam o fétido ressurgimento do racismo, xenofobia e fascismo radical. Todas as velhas divisões ideológicas foram reforçadas. E novas estão a erguer as suas cabeças revoltantes a cada dia que passa.
A nossa memória histórica parece ter-se esfumado e a nossa capacidade de sentir vergonha acabou eutanasiada nas trincheiras do anonimato garantido pela internet. A dor dos outros é agora, na melhor das hipóteses, uma categoria de negócios.
Se o que fazemos tem pouco ou nenhum efeito sobre o mundo, o nosso papel fica, quanto muito, reduzido ao de um observador participante. Podemos ser muito bons nisso, e até vistos como “um sucesso” por outros jornalistas; no entanto, isso apenas acelerou a minha percepção de que muitas saídas em reportagem não eram mais do que safaris do ego.
No Outono de 2016 regressei de Mossul, onde cobri os confrontos selvagens entre as forças do governo iraquiano e o autoproclamado Estado Islâmico. Naquele momento, estava determinado a mudar de profissão. Sentia-me tão cansado e farto da escuridão que me rodeava e ameaçava engolir-me que decidi ser o meu próprio desprogramador, para lenta mas seguramente libertar-me do culto da minha velha e derrotada religião: o jornalismo.
Mas e depois? O que iria fazer? Como poderia reinventar-me neste mundo onde meros reflexos são adorados como reis, onde nada consequente tem qualquer consequência, e onde muitos dos seus membros mais augustos agem como se não houvesse qualquer problema se o sol não voltar a nascer?
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“Olha, já vai sendo tempo de fazermos alguma coisa juntos outra vez! Vamos encontrar-nos para um café? Vamos… não me digas que não tens tempo, como sempre! Só preciso de dez minutos para te apresentar uma ideia. Acredita, vais gostar!”
Este foi, em resumo, o telefonema que recebi do meu amigo e fotógrafo Matjaž Krivic, numa manhã especialmente cinzenta de Outono. Por respeito ao leitor, omiti os palavrões que pontuaram cada frase, e que são quase a sua imagem de marca.
A minha resposta instintiva foi um suspiro profundo. Mais um projeto, mais uma obrigação que vai consumir-me. Eu não tinha acabado de prometer a mim mesmo um intervalo (extremamente necessário), uma hipótese de sair do jogo e ter algum tempo para descansar no banco e refletir?
Mas, por mais que eu o repetisse, o mantra para parar não funcionava. Nunca funcionou.
“Diz lá, então”, respondi um pouco bruscamente. Naquele momento, eu não pensava ceder ao “mestre da persuasão” que o Matjaž consegue ser, com um poder inigualável para destruir barreiras físicas e metafísicas. Nunca encontrei, nos quatro cantos do mundo, alguém que tão infantilmente não quisesse mesmo saber o significado da palavra ‘Não!’
“Regressei agora da Bolívia”, disse-me com um sorriso enigmático, a bebericar o café que acabámos por combinar.
“Salar de Uyuni, no topo dos Andes. O maior salar do mundo – e um dos lugares mais mágicos que já vi, lindo! Perto de 70% das reservas mundiais de lítio estão ali. Aquele lugar está a alimentar os nossos veículos elétricos e praticamente todos os nossos dispositivos eletrónicos, agora e nas próximas décadas! Então, vamos lá: vamos fazer uma história sobre o lítio. Que dizes? Vamos abordá-lo como deve ser, em profundidade, desde a fase da extração até à fabricação dos carros elétricos.”
Foi praticamente tudo que eu precisei de ouvir para ser convencido. Até porque sabia que o Matjaž é uma espécie de diabo, uma equipa de assalto de um homem só, um profissional do fotojornalismo da velha escola, cuja abordagem não convencional e estética única já lhe renderam todos os prémios relevantes no seu campo altamente competitivo.
“Vamos a isso. Quando começamos?”, respondi simplesmente, sem precisar de três segundos para refletir sobre as implicações do que acabara de aceitar.
“Ah sim…?” O Matjaž pareceu ficar mais chocado com a minha resposta do que se eu tivesse insultado brutalmente a sua mãe. Durante alguns segundos ficou a olhar para mim, em silêncio, como que a avaliar-me. E depois sussurrou: “O mais depressa possível.”
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Desde o início, percebemos que o lítio, a força motriz do século XXI, era apenas a nossa porta de entrada para uma história muito maior – o tipo de história que os dois procurávamos há algum tempo. Já havíamos viajado juntos por todo o mundo e fomos vendo as consequências terríveis das alterações climáticas a cada passo.
Sem o sabermos, estávamos ambos à procura de uma forma para contar esta história, que deveria estar na ponta da língua de todos, todos os dias.
Com a ajuda do Matjaž, encontrei sem esforço a minha nova linha de frente. A crise climática é nada menos que uma guerra global, total e abrangente. É a guerra da Humanidade contra si mesma – uma guerra contra as gerações futuras, contra ecossistemas inteiros e contra a própria ordem natural. É um ataque frontal e brutal ao próprio planeta que tão generosamente fornece o nosso sustento. É uma guerra contra o equilíbrio, contra a coexistência. É, em suma, uma guerra contra o próprio conceito de futuro.
A crise climática é a principal e mais crucial linha da frente do nosso tempo. E as nossas perspectivas de vencer esta guerra estão longe de ser boas.
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A Terra está a aquecer mais rapidamente do que os especialistas mais pessimistas previram. Até as estimativas habitualmente conservadoras do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) o confirmam.
A meta estabelecida na Cimeira Climática de Paris em 2015 – limitar o aumento da temperatura a 1,5 graus Celsius até 2100 – já perdeu a validade. O verão de 2021 registou dois dos meses mais quentes na história da medição de temperaturas. Em Verkhoyansk, oficialmente a cidade mais fria da Sibéria, o termómetro fixou um recorde de 37,8 graus Celsius no final de junho de 2020. Não era de admirar, por isso, que Matjaž e eu pudéssemos observar glaciares a derreter na Islândia, quando aquele país insular foi surpreendido por um verão com temperaturas noturnas que facilmente chegavam aos 25 graus Celsius. Aquela era uma nova Islândia, cada vez mais sem gelo, onde os agricultores tiveram que passar a trabalhar à noite, quando o calor permitia recuperar o fôlego – tudo isto nas imediações do Círculo Polar Ártico.
No porto de Akureyri, no norte do país, pudemos observar navio após navio a regressar do Ártico – todos eles cheios de rostos chocados e manchados de fuligem, de investigadores que testemunharam incêndios quando deveriam estar a congelar até a morte.
O Alasca, a Gronelândia e a Sibéria começaram a arder todos ao mesmo tempo. O permafrost estava irremediavelmente a derreter – e continua a derreter neste preciso momento. No entanto, todos os especialistas e decisores políticos parecem querer desvalorizar este facto gritante.
O metano, um gás de efeito estufa muito mais devastador para o clima do que o dióxido de carbono, continua a infiltrar-se na atmosfera. Pequenos lagos estão a brotar em toda a camada de gelo, que já não é permanente. Quando, inevitavelmente, o oxigénio é introduzido na equação, o resultado natural são detonações violentas.
Este é um mero vislumbre do que o futuro nos reserva.
É bom que acreditem: esta é uma linha da frente, e não apenas num sentido figurativo. É mesmo uma guerra.
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Enquanto escrevia este livro, acabávamos de viver os meses de janeiro e fevereiro mais quentes de sempre. A nível global, o Inverno parece ter sido praticamente inexistente. À medida que os gerentes dos resorts de esqui na Europa finalmente descobriam que os seus negócios não teriam mais viabilidade, vastas áreas da Austrália iam ardendo. Mil milhões de animais morreram em poucas semanas – uma informação que foi descartada como um mero dano colateral, se tanto.
A Austrália, vale a pena lembrar, é o continente mais exposto às alterações climáticas.
Este cenário apocalíptico surgiu logo após os incêndios na floresta amazónica. Num piscar de olhos, ficámos acostumados a imagens de tal forma devastadoras como se fossem tão irreais como os clímax dos reality shows ou de outros programas e espetáculos medíocres, nos quais grande parte da população vai encontrando refúgio.
A lista continua, e continua.
A sexta extinção em massa está aí, e está diretamente ligada às ações e aos efeitos da Humanidade no planeta. Neste momento, a Terra suporta apenas metade da vida selvagem que existia em 1970. A raça humana representa trinta por cento de todos os vertebrados existentes. Sessenta e sete por cento são animais de criação, enquanto os vertebrados que vivem em estado selvagem estão reduzidos a uns míseros três por cento.
Que dizer da morte da Grande Barreira de Corais da Austrália, ou do desaparecimento de 80% dos insetos do planeta? E sobre os oceanos letalmente quentes? De acordo com um estudo de 2015 publicado no The Journal of Mathematical Biology, a taxa de aquecimento atual levará a que, em 2100, a produção de oxigénio pelo fitoplâncton possa acabar, porque as temperaturas mais elevadas vão perturbar o processo de fotossíntese. Isso ditaria a mortalidade em massa de animais e humanos.
E que dizer do ‘holocausto negro’ perpetrado em todo o mundo pelos lobbies dos combustíveis fósseis, cuja sede de lucro continua a ser a maior força motriz por trás do cenário da nossa morte iminente? Ou das correntes marinhas, que mudam subitamente, ou das emissões cada vez maiores de dióxido de carbono para a atmosfera?
E que dizer dos ursos polares, que precisam de nadar em média 200 quilómetros sem parar para encontrar um pouso firme, enquanto o seu habitat natural continua a derreter à sua volta, e precisam já de caçar baleias para sobreviver?
Ou, para os mais frios entre nós: que dizer do custo de tudo isto para a economia global, estimado em 1,2 triliões de dólares em 2018?
Que tal vos parecem as flores de primavera brotando em janeiro no cume dos Alpes? E as hordas de refugiados provocados pelo clima, que vão influenciar dramaticamente o nosso futuro muito próximo? Segundo estimativas de 2018 do Banco Mundial, os efeitos das mudanças climáticas vão afastar 143 milhões de pessoas das suas casas em 2050, só na Ásia, África e América Latina.
Esta é também a história de um mundo a secar rapidamente. Um mundo cujo destino está a ser cada vez mais determinado por uma série de guerras pela água. Um mundo que pensávamos conhecer e que agora está a desintegrar-se rapidamente, enquanto continuamos a dormitar na frente à televisão.
Eu poderia continuar ad nauseam, citar dezenas de cientistas, listar centenas de números, consolidar factos, explicar o que deveria ser claro para qualquer aluno do terceiro ano (e vivemos numa época em que muitos alunos do terceiro ano são realmente mais conhecedores destes perigos do que os seus pais). Mas temi que persistir na invocação dessas provas fosse em vão. Afinal, já foi tudo dito: interminavelmente, incessantemente, enquanto o tempo médio de atenção – a principal vítima desta Era –, encolheu até restar quase nada.
A ciência é clara. No entanto, na maior parte do primeiro mundo, os efeitos das alterações climáticas ainda são arquivados na categoria de ‘algo que acontece a outras pessoas’. Algo longe de uma ameaça real, existencial e que, portanto, dificilmente merece uma resposta contundente.
Vamos colocá-lo sem rodeios: esta crise que avança rapidamente é algo para a qual a nossa evolução nos deixou muito despreparados. Pior ainda, os nossos mecanismos de sobrevivência parecem continuar a dividir-nos, quando não deveríamos olhar a custos para nos unirmos.
Por isso, em vez de recitar números e vomitar ainda mais previsões apocalípticas, o Matjaž e eu decidimos destacar as comunidades e os indivíduos que estão a enfrentar corajosamente esta calamidade. É hora de somar os esforços de todos estes visionários, a verdadeira elite do homo sapiens, homens e mulheres que escolheram não ser arrastados pela onda de indiferença e arrogância que varre o mundo.
A nossa ambição era transformar este livro num monumento a esses intrépidos soldados na linha da frente, que estão a acumular o conhecimento, a experiência e a tecnologia de que precisamos, se quisermos ter alguma chance de lutar pela nossa salvação.
De Tilos, a primeira ilha auto-suficiente em energia no Mediterrâneo, à Islândia geotérmica e completamente orientada para o futuro. Dos promissores desenvolvimentos de energia marítima nas Ilhas Orkney, no nordeste da Escócia, onde a energia excedente já está a ser convertida em hidrogénio “verde”, até à cidade austríaca de Güssing, centrada na biomassa há um quarto de século, e cujos habitantes já conseguiram reinventar como um pólo tecnológico fundamental para o desenvolvimento e produção de energia renovável. Aqui estão todos eles, pedindo humildemente a sua consideração.
Da empresa Climeworks, com sede na Suíça, que captura dióxido de carbono diretamente do ar para injetá-lo no submundo da Islândia, a várias aldeias escandinavas autossuficientes, em plena transformação holística. Do lítio que viaja constantemente entre as salinas bolivianas e as fábricas chinesas de carros elétricos. Da fábrica de incineração de resíduos na Noruega, que planeia armazenar o CO2 capturado em cavernas submarinas, a todos os indivíduos e comunidades que estão por trás desses projetos, levantando as suas vozes para nos lembrar que devemos manter a esperança, a todo o custo.
A tarefa deles – e a nossa – é excepcionalmente difícil. Mas se não estivermos todos à altura da ocasião, iremos desperdiçar a nossa última hipótese.
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Eu entendo como pode ser difícil para algumas pessoas acreditar que o cataclismo iminente ainda pode ser evitado – ou que os seus efeitos podem pelo menos ser mitigados.
A evolução da Humanidade ficou marcada, entre outras coisas, por guerras, genocídio, ecocídio, racismo, ganância e todas as formas imagináveis de violência. Depois de mais de duas décadas a cobrir os incontáveis pontos críticos do globo, recebi uma sucessão de insights medonhos sobre o funcionamento da economia global. Um grito de esperança, como o que é apresentado aqui, pode parecer uma forma de dissonância cognitiva. Muitas vezes também eu tenho dificuldade em sentir-me otimista e acreditar que, de facto, algo ainda pode ser feito.
“Um escritor não deve esperança a um leitor”, escreveu o lendário ativista ambiental Bill McKibben no livro ‘Falter’ (Ed. Henry Holt and Co., Nova Iorque, 2019). “A sua única obrigação é a honestidade – mas quero que quem pegue neste livro saiba que o seu autor vive num estado de envolvimento, não de desespero. De outra forma, não me teria dado ao trabalho de escrever o que se segue.”
Não poderia concordar mais com estas palavras.
Se há mensagem que eu e o Matjaž queremos transmitir com este livro, é esta: existem pessoas que estão a ser capazes de controlar o cinismo e o medo, focando a sua energia na busca ativa de soluções.
Mesmo que já estejamos no prolongamento e a perder por 4-0, estes bravos guarda-redes e médios-defensivos continuam a correr, a atacar e a deixar o seu coração em campo. E assim vão continuar, até ao apito final.
Este é um livro sobre esta equipa especial, e sobre os indivíduos heróicos que a constituem. Se eles falharem, a esperança não será a última a morrer. Os últimos a morrer serão os nossos filhos e os nossos netos.