VISTO DE FORA

Índia, uma história amorosa (e de odiosa tradição)

person holding camera lens

por Tiago Franco // Fevereiro 16, 2023


Categoria: Opinião

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As conversas começavam quase sempre com um “tu não percebes, vocês europeus não percebem”. Era a forma de ele me explicar que não existia a hipótese de se casar por amor.

Ele é o Rohit, um miúdo que conheci aos 24 anos, no primeiro emprego que teve na Suécia. Era um entre uma legião de engenheiros que chegam aos países nórdicos para preencher os milhares de empregos que a população local não tem capacidade para corresponder.

Desde o primeiro dia que mostrou três interesses muito fortes: fazer os pais felizes, ver montanhas e comer galinha com arroz, o famoso byriani da sua Hyderabad natal.

Não sei quantas vezes vi este rapaz a comer byriani ao almoço. Umas centenas, certamente. 

Ainda assim, o grande objectivo da vida era fazer os pais felizes. Disse-me variadíssimas vezes que a sua geração seria a última a sofrer. Casaria com quem os pais escolhessem e aos filhos daria total liberdade para escolherem as companhias para a vida.

Durante anos escondeu uma paixão que tinha em Gotemburgo: Anna vinha da mesma cidade, trabalhava no mesmo sector e era amiga desde sempre. Tinham feito o percurso entre a escola em Hyderabad e o mercado de trabalho em Gotemburgo, juntos.

Os pais não aceitariam o casamento, dizia ele, de cada vez que tentava convencer-se de que não valia sequer tentar. Eram de castas diferentes embora altas. Rohit e Anna não fazem parte da Índia que vemos nos filmes. O mundo deles é separado da realidade por muros altos e condomínios privados verdejantes.

Os anos foram passando e fomos saltando juntos de projecto em projecto. Em todas as equipas onde trabalhei desde 2017, sugeri a contratação do Rohit. Desde logo porque é um excelente companheiro de jorna, mas, principalmente, para o poder proteger das agruras do mercado que não se compadecem com dramas indianos.

O stress causado pela situação de não poder estar com quem queria, trouxe-lhe anos de noites mal dormidas, várias idas ao médico por doenças que apareciam não se sabia de onde, e, de quando em vez, risco de despedimento por causa das fugas para a Índia para acalmar os pais e tentar convencê-los que aquele era o caminho certo.

Um dia telefona-me a pedir que vá com ele ao médico. Estava convencido que ia ouvir que tinha cancro e não queria estar só. Fomos juntos e, felizmente, era apenas um hospital privado que cobrava por cada consulta, mesmo aquela de três minutos para lhe dizer que não tinha nada.

Perdi a conta ao número de situações destas que foram acontecendo ao longo dos anos. Certo dia atirou-se para o mar e, uma vez lá dentro, disse-me “a propósito, eu não sei nadar”. Depois de o “rebocar” para terra, passei a hora seguinte a ensiná-lo a boiar. Outra vez foi a conduzir um carro com caixa manual.

Algures no tempo, o meu filho disse-me que parecia que tinha adoptado o Rohit. De certa forma, foi o que aconteceu com ele, a alternar a forma como me chamava: ora “velho rezingão”, ora “baba”.

Até que cedeu à pressão e disse à Anna que nunca mais a queria ver. Iria cumprir o desejo dos pais, já não aguentava o drama 24 horas por dia. Nessa altura disse-lhe que estava a cometer um erro. Percebendo ou não, mesmo com os óculos europeus postos, só via a parte prática da coisa. Ele é um emigrante, vive 95% do tempo longe dos pais… Que raio importam as tradições?

Disse-me que seria expulso de casa e rejeitado pela família. É muito drama junto, a que acresce o facto de ter de aturar uma mulher escolhida por outros.

Se já é difícil acertar quando escolhemos no decorrer normal da vida, quanto mais quando aparecem num catálogo de qualidades e capacidades.

Repeti. O drama não era o que a família pensava, mas sim a perda de um amor para a vida.

Começou a ir a entrevistas e a conhecer as “pretendentes”. Nenhuma interessava. O pai fez muita força com uma candidata que vinha de famílias próximas do primeiro-ministro. Rohit ficaria garantido para a vida.

Num sistema de castas não existe elevador social. Dinheiro puxa dinheiro, miséria puxa miséria. 

Ele disse que não queria saber. De nada. Dinheiro, posição, as candidatas. Queria ver montanhas, ser feliz e livre. E comer byriani.

Engonhou o mais que pode e Anna, curiosamente, fez o mesmo. Durante um ano foram rejeitando todas as hipóteses, até que Anna disse que esperaria por ele o tempo que fosse necessário. 

É aqui que tudo muda e Rohit decide ir contra a família. Mais um ano de drama com cortes de relações, mais doenças e intermináveis conversas telefónicas ou viagens à India.

Estamos em período de covid-19 e eu sento-me em frente à nossa chefe de equipa, de então, para a convencer a não despedir o Rohit.

white concrete castle near body of water

O avô aconselha o pai para que expulse o filho da família. Que raio de avô valoriza mais as tradições do que o neto? Sacana do velho, está aqui ao meu lado, enquanto escrevo isto, na Índia, com cara de poucos amigos.

As ameaças são tantas por parte da família que Anna resolve desistir. Tem perto de 30 anos, e isso, em linguagem de tradição, significa que “ninguém a quer”.

Rohit pede-me que escreva uma carta ao pai dele e fale com a Anna. Encontramo-nos num bar e, depois de duas cervejas, ela está convencida de que desistir não seria opção. Felizmente, não está habituada a beber, porque, se fosse uma portuguesa, ao preço da cerveja em Gotemburgo, aquela sessão tinha ficado pela hora da morte.

Chegamos ao dia 15 de Fevereiro, a data escolhida sem consentimento do pai do noivo. Data que deixa a noiva a poucos dias de completar os 30 anos e casar, ainda, “dentro do prazo”. O pai de Rohit aparece no evento, cumpre a tradição, faz o seu papel, sem dirigir uma palavra à família da noiva. 

two men walking on street

O ambiente é pesado. O casamento dura três dias e os momentos estranhos sucedem-se. 

Rohit aproxima-se de mim, com a cabeça cheia de arroz, depois de um ritual aos deuses de duas horas e diz: ” e agora, já percebes?”

Disse-lhe que sim. Percebo. Percebo que vai voltar para a Suécia com a mulher que ama. Casado. E com a bênção dos deuses. Todos os três mil que devem existir.

O amor venceu a tradição.

Essa é que é a notícia. 

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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