A Guerra na Ucrânia vai entrar no seu segundo ano e é cada vez mais notória a luta da propaganda versus jornalismo. A recente reportagem do jornalista veterano norte-americano Seymour Hersh sobre a sabotagem do gasoduto Nord Stream 1 e 2 pelos militares dos Estados Unidos, que foi classificada de “ficção”, é um exemplo do que está em causa. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.
Tenho aqui à minha frente um livro que comprei em 2018. É a autobiografia do jornalista norte-americano Seymour Hersh. O título diz tudo sobre quem é esta pessoa: “Repórter”. Apenas isso. E já é muito. Na capa, o repórter está ao telefone (com fios) e tem uma máquina de escrever à sua frente. A foto foi captada em 1972 na redacção do “The New York Times”.
Seymour Hersh é um nome assaz conhecido – e reconhecido – nos Estados Unidos. A sua primeira grande reportagem data de 1969, quando denunciou o massacre de My Lai, no sul do Vietname, onde soldados norte-americanos mataram mais de 300 civis. Ao serviço do The New York Times, Hersh investigou depois o Watergate e muitas das suas reportagens fazem parte da história que, em Agosto de 1974, levou à demissão do Presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon.
Com boas fontes juntos dos militares e serviços secretos norte-americanos, denunciou depois, em Março de 1975, um plano da CIA para recuperar um submarino soviético afundado no Oceano Pacífico desde 1968. Conhecido como “Project Azorian”, o plano envolveu a construção de um navio capaz de transportar poderosas gruas que iriam trazer o submarino à tona, permitindo assim aos Estados Unidos terem acesso aos segredos nucleares dos soviéticos. A construção do navio custou, em números dos dias de hoje, o equivalente a 4 mil milhões de dólares. E contou com o apoio do milionário Howard Hughes como fachada para a operação secreta.
Dois meses depois daquela história, Seymour Hersh assinou uma segunda reportagem onde denunciava operações navais de espionagem com submarinos norte-americanos em águas territoriais da União Soviética. Uma operação que levantava muitas críticas dentro dos meios militares dos EUA por colocar em causa a détente da Guerra Fria.
Não foram histórias de “ficção”, mas pareciam. Bem mais recente, lembremo-nos de que, em 2004, Seymour Hersh, ao escrever então para a revista The New Yorker, foi ainda o jornalista que revelou ao mundo como eram os processos de tortura norte-americana na prisão iraquiana de Abu Ghraib.
Por isso, quando, aos 85 anos, este repórter escreve num site da Internet dedicado a artigos que não conseguem ter lugar na Imprensa generalista, que os militares dos Estados Unidos levaram a cabo uma missão secreta para destruírem o gasoduto russo Nord Stream 1 e 2, através de uma explosão que se registou a 26 de Setembro, na zona próxima à Noruega, então temos de ter em consideração que não estamos propriamente face a um qualquer jornalista.
Por muito que a Casa Branca venha desmentir e dizer que a história de Hersh é “completamente falsa” e que mais parece saída de uma “ficção”, sabemos que não podemos simplesmente descartar aquela sabotagem que, no fundo, tem uma grande importância estratégica para o conflito na Ucrânia, que entra agora no seu segundo ano.
No prefácio da sua autobiografia, Seymour Hersh explica que ele é “um sobrevivente da época dourada do jornalismo, quando os repórteres dos jornais diários não precisavam de competir com o ciclo noticioso de 24 horas da televisão por cabo, quando os jornais tinham dinheiro da publicidade e dos anúncios de procura de emprego”. Uma época em que ele tinha a possibilidade de “viajar para qualquer lugar, a qualquer hora, por qualquer motivo, com cartões de crédito da empresa”.
Havia tempo para relatar uma notícia de última hora sem ter de depender do que estava constantemente a aparecer na página de Internet do jornal. Mas o que não havia mesmo no tempo de Seymour Hersh, segundo ele, eram os “especialistas” e jornalistas de TV por cabo “que começam as respostas a todas as perguntas com as duas palavras mais mortais do mundo dos média: ‘Eu acho’”.
O jornalismo actual, acrescenta Hersh, é composto, essencialmente, por coisas como “pouco mais do que dicas ou indícios de algo tóxico ou criminoso”. A falta de tempo, dinheiro ou equipas qualificadas, desembocam em “histórias do tipo ‘disse ele, disse ela’, nas quais o repórter é pouco mais do que um papagaio”.
Aponta ainda este norte-americano: “Sempre considerei que a missão do jornalista era a procura da verdade e não a mera notícia do conflito. Houve um crime de guerra? Os jornais ficam agora dependentes de um relatório negociado nas Nações Unidas que surge, na melhor das hipóteses, meses depois dos factos. E os média fizeram algum esforço significativo para explicar por que um relatório da ONU não deve ser considerado por muitos, à volta do mundo, como sendo a última palavra? Existem sequer relatórios críticos sobre a ONU?”.
As perguntas de Hersh deviam ser as perguntas de todos os jornalistas que dizem fazer jornalismo. E, de forma lapidar, afirma este repórter: “Toda a minha carreira tem sido sobre a importância de contar verdades importantes e indesejadas e tornar a América num lugar mais informado. Talvez seja por isso que é muito doloroso pensar que nunca teria conseguido fazer o que fiz se estivesse a trabalhar no mundo caótico e desestruturado do jornalismo de hoje. Claro que ainda estou a tentar”.
A tentar.
E essa tentativa viu-se agora com o descrédito votado à sua reportagem sobre a destruição do gasoduto russo que fornecia gás à Alemanha e que, na prática, veio ajudar ao aumento dos gastos da produção de energia na Europa e todas as consequências que vemos com os aumentos dos produtos nos supermercados e nas taxas de juros do crédito à habitação. No fundo, a inflação.
A guerra é uma coisa terrível. Não há honra, não há regras – apesar das convenções de Genebra que quiserem inventar. O pior do ser humano é revelado, embora também existam histórias de heroísmo de um e outro lado.
Portugal, como membro da NATO – aliás, membro fundador da NATO ainda no tempo da ditadura de Salazar –, está do lado da Ucrânia. Logo, qualquer notícia que seja suspeita de agradar aos russos, deve ser ponderada com critérios mais apertados do que qualquer outra que seja bem mais simpática ao “nosso lado”.
A isso não se chama jornalismo, mas sim propaganda.
Um ano volvido sobre o início da Guerra na Ucrânia, esta já levou muitos jornalistas a irem visitar o terreno em aventuras controladas nos cenários de guerra, de onde saíram vivos para contarem histórias idênticas a muitas outras desde que o homem inventou a barbárie dos conflitos armados modernos.
Fugas em massa, pais separados de filhos, despedidas comoventes, reencontros emocionantes, mortes de inocentes, exemplos de bravura e resistência, relatos de massacres inimagináveis, crimes de guerra, avanços e recuos de tropas, armas inteligentes e humanos cada vez mais estúpidos. Há de tudo para que se escrevam belos discursos, poemas, textos emotivos, artigos importantes, livros de crónicas que engrandecem currículos de jornalistas ditos “de guerra”.
Entretanto, na retaguarda, enquanto uns vão jantar fora à sexta-feira, há ainda jornalistas como Seymour Hersh que arriscam a vida e reputação ao revelarem o que alimenta de verdade esta guerra. São esses quantos, que insistem em tentar fazer jornalismo, mesmo correndo o risco de serem acusados de criar ficções, que ainda mantém a chama do jornalismo acesa.
Só que, para eles, soldados da pena jornalística, não haverá medalhas nem sequer uma chama eterna como num monumento ao soldado caído.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
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