Às vezes sentia coisas com o gosto.
Lia uma notícia e sentia metal na boca, ferro encostado aos dentes a enferrujar. Outras notícias e a língua cheia de algodão, a iminência de asfixiar.
Parar um momento e avaliar porque temos a garganta arranhada e a cabeça a latejar, com um paladar que nos sobe pelo nariz, é uma tarefa exigente e, parece hoje, cada vez mais inevitável qualquer que seja a fonte de informação que utilizamos. Para quem sinta o mundo com a língua, obviamente que os esforços são redobrados.
E foi o que primeiro desconfiou. Como assim perder o gosto?
— É sim. Um dos sintomas, sabe? Perde-se o gosto.
Ora mas isso acontece tantas vezes…
(E a mãe compadecia-se do seu estado febril e desalentado à mesa “não tens apetite não é?”
— É que a comida não sabe a nada…)
Ou sabe tudo a papel e quem é que quer ter a boca cheia de papel sem ser para guardar segredos?
Então, ainda com desconfiança, voltou a subir a gola do casaco e cumprimentou com um aceno, agradecendo o gentil aviso. Se perdesse o gosto estava sabido que teria de ir para a fila penitente e deixar o testamento em cima da escrivaninha. Até porque a morte não vem todos os dias mas para cada um só vem uma vez, já diziam as velhas e é verdade.
A morte. Já há uns anos que anda vestida de popelina colorida.
Já para nós, a perda de pessoas às vezes torna-nos de vidro. Certas salas estão cheias de pessoas assim, como cristal vazio, prestes a partir com um encostar mais brusco. E nós de vidro, a deslizar por entre estofados dos sofás e corrimões de madeira carunchosa, cada toque um tilintar.
Chegou a gola novamente ao queixo para enfrentar o vento e pensou nas pessoas que ficaram em cúpulas para trás. Uma vida passada cheia de bolhas em cada sítio com personagens que viveram tanto tão juntas, em convivência estreita e confinada. Será que existiram ou foram imaginadas? Serão elas hoje de vidro por quem perderam?
Batendo os pés no tapete de entrada imaginou neve, mas a Primavera à porta, coelhos que põem ovos de chocolate e amêndoas revestidas a açúcar.
Pelo limiar, antes mesmo de ter coragem de encerrar o mundo de lá de fora, avistou num relance uma nave hesitante. Um disco voador a latejar por entre o céu branco de Fevereiro e a olhar intensamente o quarteirão.
Um baloiçar da estrutura voadora mais forte e ei-la! A pequena nuvem de fumo a sair do traseiro, fofa como algodão doce.
E talvez prova que sempre somos nós à procura de casas de gengibre.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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