Não quero entrar em grandes considerações sobre os discursos de Biden e Putin, agora que se completa um ano sobre o início da invasão russa, porque foram mais ou menos óbvios para quem os ouviu.
No essencial, Putin falou para os russos, repetindo a narrativa de que foram empurrados para este conflito, e apelando ao patriotismo na defesa do país. Duas partes perigosas foram realçadas, a saída do acordo nuclear, que é mais uma forma de pressão para que o apoio à Ucrânia cesse.
Pela primeira vez, que me lembre, Putin falou na defesa das fronteiras históricas. Ora. isso já é um embrulho maior, porque deve meter a Moldávia e coisas do género.
Já Joe Biden falou para o Mundo e vendeu uma ilusão que nem Zelensky deve ter acreditado: no fundo, a promessa de que a Rússia não vencerá nada na Ucrânia e mais um pacote estratosférico de dinheiro para acumular à dívida externa ucraniana. Ou seja, os Estados Unidos querem continuar a lucrar com esta guerra, que tem sido um excelente negócio, até ver. Enfraquecem os inimigos de sempre, vendem energia à Europa e ganham uma fortuna com as armas.
Portanto, nada de novo: há que continuar a combater até ao último ucraniano e a empobrecer a Europa.
O que me espanta nisto tudo são as análises tranquilas feitas por quem já fala em conflito nuclear como se estivéssemos a discutir se a pizza deve ou não levar ananás.
Na CNN Portugal, dizia um professor – confesso que não me lembro o nome, mas tinha um discurso calmo e perceptível – que, se um confronto nuclear tivesse início, seria o fim da Rússia. E explicava a simples razão para tal vaticínio, pois a população da Rússia concentrava-se em três cidades: Moscovo, São Petersburgo e Vladivostok. A partir daí, a restante população estava espalhada pelas estepes da Sibéria, viviam em cabanas e vestem peles de tigre. Já nos Estado Unidos, este cenário não se verificava, porque a população se espalhava por muito mais cidades.
O jornalista agradeceu a intervenção do professor, a quem disse que era sempre um gosto conversar e aprender com ele. Quanto a mim, como também gosto de aprender, fui ver as populações por cidade em cada um dos dois países.
Os Estados Unidos têm cerca de 18 milhões de habitantes em quatro cidades: Nova Iorque, Los Angeles, Chicago e Houston. Já a Rússia tem essa população dividida por apenas duas cidades: Moscovo e São Petersburgo.
Depois, podemos ver que os Estados Unidos têm mais cinco cidades com a população acima de um milhão de habitantes. enquanto a Rússia tem 14 cidades acima dessa fasquia.
Assim à primeira vista, nessa análise de despejar bombas e matar a eito, até parece ser mais complicado fazê-lo na Rússia. Mas isto sou eu a dizer, que não sei quantas bombas nucleares são precisas para matar 1 milhão de pessoas.
Esta discussão, confesso, é profundamente desinteressante, mas já que é tema em horário nobre, seria pelo menos útil que não nos continuassem a contar a história de que os russos se dobram facilmente.
É que eu ainda estou para perceber duas coisas no meio deste conflito. A primeira é saber como nos andaram a vender, meses a fio, que os ucranianos, quais espartanos, andavam a dizimar os mal equipados russos, sem motivação e liderança. Eu li mesmo que seria indiferente mandarem mais reservistas para o terreno, porque seriam todos dizimados. Em que momento da História é que os russos foram dizimados? Contam assim tantos?
Hoje, quando é óbvio para todos que a Ucrânia está presa por arames no campo de batalha, seja lá qual for o pedido da semana feito pelo Zelensky, a narrativa é a mesma. Enquanto a Europa se encolhe no apoio de tanques, a Rússia produz 40 por mês. Mas continuamos a ouvir discursos alucinados que rejeitam as negociações e que garantem a vitória ucraniana.
Expliquem-me, como é que isto é possível?
Como é que se termina esta guerra sem Zelensky salvar a face e Putin também? E, por favor, poupemo-nos às moralidades do invasor.
Esse tema foi discutido N vezes, todos sabemos quem invadiu, todos sabemos quem não devia ali estar e todos compreendemos que o Ocidente joga uma cartada com vidas ucranianas (de outros invasores nunca quiserem saber, que me lembre).
Portanto, sabendo toda a verdade, a razão e o certo a fazer, há ainda alguém que imagine que a guerra se termina no terreno? Como?
Zelensky faz, e bem, o que pode para manter a Ucrânia na agenda sem cair em esquecimento. Mas mesmo que os Estados Unidos e alguns países europeus mande, armas de meses a meses, alguém acredita que conseguiremos mais do que um impasse eterno? Uma situação como a que a Coreia vive há décadas?
Percebo o odioso de deixar que Putin fique com uma fatia de terreno ucraniano, mas continuo a não conseguir ver, um ano depois, uma forma de vencer esta guerra sem que esta se transforme em guerra global. E mesmo assim tenho as minhas dúvidas.
A China, que andou discreta até agora, assumiu agora um lado e juntou-se aos parceiros de sempre. A tal “Rússia isolada” está cada vez mais forte e já tem apoios em três continentes
Não vou voltar a explicar que a forma como vejo a realidade não se traduz em apoio ao invasor. Gosto de repetir isto para que não restem dúvidas. Mísseis russos em Kiev ou israelitas em Gaza, representam para mim a mesmíssima coisa. Um invasor.
Mas isso não me impede de ser prático na procura de uma solução. E não vejo, continuo a não ver, um ano depois, que isto se resolva no campo de batalha. A não ser que pensem numa guerra global, com intervenção da NATO e… mesmo assim não sei.
Até ver, NATO, Estados Unidos e União Europeia (alguns países, não todos) parecem interessados em prolongar e garantir esta transformação no modo de vida dos europeus, o seu empobrecimento e a continuação da carnificina a Leste. O negócio continua a falar mais alto.
Não acredito, por um segundo, que Biden e seus discípulos acreditem numa vitória ucraniana. Mas acredito que queiram continuar a vender essa ilusão.
Aliás, na verdade, eles são, até ver, os únicos vencedores desta guerra.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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