PRÉ-PUBLICAÇÃO: Plano B, DE Boštjan Videmšek

Bolívia: Lítio, a força motriz do século XXI

view of Earth and satellite

por Boštjan Videmšek // Fevereiro 24, 2023


Categoria: Exame

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O PÁGINA UM apresenta, em pré-publicação, o livro da autoria de Boštjan Videmšek, jornalista esloveno (que entrevistámos em Novembro passado), editado pela Perspectiva, pertencente à jornalista Patrícia Fonseca, também directora do jornal Médio Tejo. A obra é constituída por um conjunto de 10 reportagens da Noruega à Bolívia e da Escócia à China, com fotografias de Matjaž Krivic e prefácio de Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. A editora oferece um desconto especial de 20% e portes CTT aos leitores do PÁGINA UM, de forma directa e sem qualquer contrapartida para o jornal. Basta enviar um e-mail para perspectiva.livros@gmail.com com referência ao PÁGINA UM e a indicação da morada de entrega.


Ao final da manhã, as cores ficam mais bonitas, mais intensas. Até onde a vista alcança, o branco luminoso das maiores salinas do mundo mistura-se com o azul suave dos céus límpidos sobre o deserto alpino dos Andes bolivianos. O silêncio hipnótico, bom para aliviar o peso dos pensamentos, é quebrado a espaços pelo assobio de uma brisa suave, embora decididamente fria. Os picos em redor, alguns deles com quase cinco mil metros, refletem-se nitidamente na fina camada de água da chuva que caiu pela manhã e ainda não evaporou.

Num dia límpido, e visto de longe, o Salar de Uyuni parece uma miragem. De perto, é a constatação de um milagre. Mas poderá não permanecer assim por muito mais tempo.

Boštjan Videmšek, na Estufa Fria, em Lisboa, durante a entrevista ao PÁGINA UM em Novembro do ano passado. (Foto: Paulo Alexandrino)

Ao longo da margem sul do lago salgado, máquinas industriais rugem em intensa atividade. Centenas de camiões andam num vai-vem sobre a crosta salgada, chiando como animais de carga exaustos, alguns deles com trinta ou quarenta anos nas rodas. A fumaça do diesel infesta o ar fresco da montanha. No seu rasto, os camiões deixam marcadas linhas castanhas na brancura virgem do solo, fazendo com que as dezenas de quilómetros quadrados do lago pareçam uma tigela gigante de café com leite.

Os trabalhadores perfuram o sal com equipamentos gigantes, procurando a salmoura por baixo. Alojados sob quantidades colossais de magnésio e potássio, está seu objetivo: o lítio, a fonte de energia essencial para todos os gadgets do mundo; o componente chave para sustentar todo o século XXI.

Visualmente, a violação desta paisagem inocente e delicada tem um impacto brutal.

Os trabalhadores, vestindo as roupas vermelhas da empresa de mineração estatal Comibol, carregam os camiões com escavadoras. A salmoura é transportada para piscinas próximas, esculpidas no meio do lago. Algumas dessas piscinas têm mais de um quilómetro de diâmetro. Vista de cima, parecem campos de arroz alienígenas, ou obras de arte pintadas por cubistas depois de uma noite de absinto.

Para facilitar os complexos processos químicos necessários, a massa mineral é deixada ao sol durante pelo menos três meses. Quando está pronta, é processada na fábrica de lítio Planta Llipi, no que ainda é um projeto-piloto.

No seu primeiro ano de operação, em 2016, produziu cerca de vinte toneladas de carbonato de lítio. A quantidade produzida em 2017 foi três vezes maior.

Embora estas quantidades possam parecer insignificantes num panorama mais amplo, acredita-se que as profundezas das maiores salinas do mundo contenham as maiores reservas de lítio do mundo. Segundo algumas estimativas, os Andes bolivianos contêm 70% do lítio do planeta, e vários estudos têm sido feitos para corroborar essas alegações. De acordo com o mais otimista, 140 milhões de toneladas de lítio podem estar disponíveis no Salar de Uyuni, enquanto o mais pessimista – do Serviço Geológico dos EUA – considera existirem “apenas” nove milhões de toneladas.

Vastas quantidades de lítio também foram detectadas no fundo dos oceanos do mundo. Por isso o setor da mineração, uma das indústrias mais destrutivas do planeta, já anda a olhar para os mares à procura de novas oportunidades de investimento. Mas os planos de conquista marítima ainda estão longe de poderem concretizar-se.

Uma impressão semelhante – a de um longo caminho ainda a ser percorrido – pode ser sentida na fábrica piloto de lítio de Llipi. A central está localizada nas margens do Rio Grande, de cor castanho-avermelhada. A sua pedra inaugural foi colocada pelo ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, derrubado num golpe de Estado com ligação aos negócios do lítio, em 2019.

O incendiário socialista lançou a obra com muita pompa e retórica visionária. Em 2010, Morales fez previsões de grande esperança para a Bolívia e o “petróleo do século XXI” inspira a sua visão, considerando haver na exploração do lítio uma oportunidade única para corrigir uma série de erros históricos.

Logo após a sua ascensão ao poder, Morales nacionalizou todos os recursos naturais – desde o petróleo, passando pelo gás natural, até todos os tipos de minerais existentes. Os recursos naturais, por tanto tempo classificados como uma maldição para o povo boliviano, iram ser finalmente uma grande vantagem, o motor da economia nacional e de todos os programas sociais que Morales prometia implementar.

No entanto, até agora essa visão idealista não se concretizou. Para começar, porque a Bolívia não tem pessoal suficientemente qualificado para explorar de forma optimizada as suas riquezas naturais. Por outro, a economia mundial tornou-se tão agressivamente globalizada que é impossível prosperar fora do sistema, pelo menos no que diz respeito aos mercados de metais, minerais e combustíveis fósseis.

“A Bolívia vê o lítio como um dos seus grandes projetos estratégicos. Estamos bem cientes do que uma expansão significativa do mercado nos pode trazer”, diz Miguel Parra, diretor de produção da fábrica de Llipi.

Parra recebe-nos no seu escritório, nas margens das grandes salinas, informando-nos que o projeto-piloto está prestes a terminar. Em abril de 2018 foi concluída uma nova fábrica de lítio, construída no próprio lago, e o colossal projeto governamental de extração de lítio entrou na sua segunda fase.

Era óbvio que os gestores da empresa estatal estavam com pressa. O mercado de carbonato de lítio está em crescimento acelerado e as previsões indicavam que poderia facilmente triplicar nos cinco anos seguintes. Compreensivelmente, o preço também continua a aumentar: o lítio ainda é o componente para baterias mais eficiente de todos, de longe. Não só alimenta os nossos telemóveis e laptops, mas também painéis solares, robôs e, claro, veículos elétricos. Especula-se, aliás, que o destino de toda a empreitada boliviana de exploração do lítio depende do sucesso dos carros elétricos.

Mas voltaremos a este ponto mais tarde.

“Este é um projeto do Estado”, explica Miguel Parra. “Tudo é dirigido a partir de La Paz. Concordo que estamos a progredir devagar. Mas não há outra forma. Já foi muito trabalho concluído, e ainda há muito mais a fazer. Todo o desenvolvimento da tecnologia mundial pesa sobre os nossos ombros. O processo de extração no Salar de Uyuni é muito mais complicado do que na vizinha Argentina ou Chile. Nesses países, os lagos salgados estão localizados em altitudes mais baixas, com um clima mais seco. E o lítio lá está ‘preso’ sob consideravelmente menos magnésio e potássio do que o nosso aqui”, explica.

Um observador crítico poderia notar que o processo de produção na central piloto estava a decorrer num ritmo bastante descontraído. Nem um único quilómetro das estradas à volta do Salar de Uyuni está sequer pavimentada. Durante a nossa visita, três jovens soldados e dois cães vadios constituíam a equipa de segurança que guardava o maior projeto estratégico da história daquele país. Com um pouco de coragem, seria possível dirigir um veículo todo-o-terreno pelas salinas e entrar pelas piscinas artificiais e as plataformas de teste. É verdade que seria um pouco mais difícil chegar à recém-construída central 2.0 – mas apenas por causa de toda a água que a circunda.

A central nova e melhorada é facilmente visível ao longe, em desarmonia com a beleza magnífica do lago. A área de produção pode ser alcançada através de uma longa estrada deserta, sem postos de controle, que se estende pelas pastagens das omnipresentes vicunhas, mamíferos típicos dos Andes. Juntamente com o grão de quinoa, rico em proteínas, estes ruminantes vivazes e sempre inquietos constituem ainda a base da subsistência da população local.

A fábrica de Llipi empregava 250 pessoas em 2017, a maioria trabalhadores manuais. Há poucos especialistas em processamento de lítio na central – quase não existem no país.

No entanto, o sentimento de sonho e irrealidade que envolve este projeto não significa que a Bolívia está adormecida. Pelo contrário: o parlamento boliviano criou a Empresa Pública Nacional Estratégica de Recursos Evaporíticos, com a missão especial de gerir a produção de lítio. O seu diretor está autorizado a assinar contratos com empresas privadas, nacionais ou estrangeiras.

O mercado boliviano de lítio está claramente a abrir-se ao mundo. Os chineses não são os únicos a manifestar interesse; japoneses, alemães, suecos, franceses, suíços, coreanos e canadianos foram rápidos a pôr-se em campo. Segundo as nossas fontes, a gigante elétrica americana Tesla também quer participar no projeto boliviano. A bateria do Model S da Tesla requer cerca de 54 quilos de carbonato de lítio, semelhante ao que é necessário para alimentar cerca de 10.000 baterias de telemóvel.

No seu relatório de 2017, o fundo de investimentos Goldman Sachs designou o carbonato de lítio como “a nova gasolina”. Também previu que, até 2025, o mercado de lítio irá triplicar, com uma procura anual na ordem das 470.000 toneladas.

O relatório alerta corajosamente que o simples aumento de 1% na produção de veículos elétricos poderia aumentar a procura de lítio para mais de 40% do que existe disponível com a produção atual. A Bolívia pode entrar no mercado no momento ideal?

“A FMC, meus antigos empregadores, tentou explorar o Salar de Uyuni no final dos anos 80 e início dos anos 90”, lembra Joe Lowry, diretor da empresa Global Lithium e um dos maiores especialistas mundiais em lítio (apelidado pelos seus seguidores no Twitter como “Mr. Lithium”).

“O caos governamental e a infraestrutura precária apresentavam demasiados problemas e a empresa optou por criar explorações na Argentina. Trinta anos depois, a Bolívia ainda carece de infraestruturas básicas, bem como do tipo de governo com o qual os investidores possam sentir-se confortáveis.”

Embora cético em relação à possibilidade de a Bolívia ser uma história de sucesso na exploração do lítio, Lowry não duvida que os mercados de carbonato de lítio e baterias de lítio estão prestes a explodir. O aumento no consumo de baterias está fortemente ligado a um boom nos transportes elétricos, do qual os automóveis são apenas os precursores. “Grande parte da população mundial viaja diariamente em autocarros”, lembra Lowry, e os “bens de compras online também serão cada vez mais entregues por veículos elétricos automatizados”.

Joe Lowry prevê que o aumento da procura nos mercados de lítio terá sérias consequências geoestratégicas. Os conflitos armados não estão fora de questão. “Argentina e Chile continuarão a ser os dois principais players, com a Bolívia certamente a ter o seu crescimento também, mas o frenesim da produção de lítio vai-se espalhar por África.”

Até agora, os chineses foram os únicos que os bolivianos deixaram entrar no seu grande projeto nacional. A Bolívia e a China mantêm relações amigáveis há muito tempo e o presidente socialista da Bolívia vê a abertura de uma porta para Pequim como um movimento anti-imperialista.

salar de uyuni in Bolivia

Nos últimos quinze anos, a China tem vindo a acumular concessões para a exploração de riquezas naturais por todo o terceiro mundo. A agilidade ideológica da China casou com a ganância descarada de muitos líderes latino-americanos e africanos. O impacto no meio ambiente desta investida chinesa não foi menos ruinoso do que o das corporações americanas e europeias.

Em setembro de 2016, a China foi destinatária da primeira entrega de exportação de lítio da Bolívia. Uma remessa simbólica, de 15 toneladas de carbonato de lítio que, segundo as nossas fontes, foi vendida por 9.200 dólares por tonelada.

Miguel Parra, diretor de produção da central de Llipi, diz-nos que cerca de 90% da produção de lítio é vendida para a China. Uma pequena quantidade é enviada para a Suécia, e o restante é entregue numa fábrica chinesa de baterias de lítio, em Potosi. Miguel Parra não prevê que a proporção da distribuição mude muito nos próximos anos.

A parte central da Alemanha Oriental foi o centro mineiro da antiga República Democrática Alemã. A par do impacto da indústria química, séculos de mineração devastaram o meio ambiente e degradaram centenas de quilómetros quadrados de solo, que deixaram de poder ser utilizados para a produção de alimentos.

Um bom quarto de século após a reunificação da Alemanha, a área em redor de Sondershausen, onde costumava operar a maior mina de sal do mundo, está quase deserta. Nas cidades e vilarejos da região vivem sobretudo idosos, muitos deles mineiros aposentados. As gerações mais jovens partiram para as grandes cidades ou para a Alemanha Ocidental. As aldeias desta zona, com as suas excursões organizadas às minas fechadas, emanam um bafo de nostalgia comunista.

O local e o ambiente não poderia ser mais diferente dos Andes bolivianos. No entanto, os dois lugares têm algo em comum: à medida que as pessoas foram embora, a indústria das energias renováveis tomou conta deles, em grande estilo.

black and white car door

Intermináveis quilómetros quadrados de prados e lotes de fábricas abandonadas estão agora repletos de painéis solares. As turbinas eólicas tornaram-se um elemento omnipresente na paisagem.

“Esta região está a viver uma revolução tecnológica, embora isso possa não ser óbvio a olho nu”, explica Heiner Marx na sede da empresa K-UTEC, em Sondershausen. Marx é diretor administrativo e proprietário maioritário da empresa que se considera herdeira do que, antes da queda do Muro de Berlim, era um dos maiores conglomerados de mineração e indústria química da Alemanha Oriental.

Nesses tempos, empregavam 24.000 pessoas. Hoje – após a sua privatização em 1992, e a sua transformação em empresa pública em 2008 – a empresa tem apenas 100 trabalhadores, a maioria engenheiros e cientistas altamente qualificados. Em comum com o ex-gigante da mineração só mesmo a sua localização, e a tarefa de fechar aquela que chegou a ser a maior mina de potássio do mundo (o processo envolve o enchimento das gigantescas câmaras escavadas e que se estendem por quilómetros intermináveis, num submundo totalmente degradado).

Atualmente, a K-UTEC é uma empresa que investiu em engenharia e no desenvolvimento de tecnologia de mineração e química, consolidando a sua presença no comércio global de carbonato de lítio.

É a única empresa europeia a ter participado ativamente na pesquisa para a escavação e extração de carbonato de lítio dos Andes bolivianos. “Em 2012, as autoridades bolivianas iniciaram uma licitação pública para um parceiro de engenharia na área da pesquisa e produção de lítio. Decidimos candidatar-nos e acabámos por vencer”, explica Heiner Marx.

Cinco anos depois, com o comércio global de lítio a aquecer, os projetos bolivianos estavam ainda muito atrasados. Apesar de todas as projeções otimistas e do crescimento do mercado global, quase não avançaram.

“Os bolivianos pediram-nos ajuda e demos-lhes alguns conselhos. Em novembro de 2015, apresentámos ao presidente Evo Morales o plano de formação do pessoal-chave de engenharia. A Bolívia tem uma escassez crónica de quadros e, com a nossa proposta, o governo alemão arcaria com todas as despesas de educação. No entanto, até agora não recebemos resposta de La Paz. Acho isso muito difícil de explicar. Enquanto esperamos por uma palavra da Bolívia, estamos a tentar otimizar o processo de evaporação utilizado no Salar de Uyuni”, revela o empresário e cientista alemão.

Depois de várias visitas aos Andes bolivianos, Heiner Marx acredita que a Bolívia precisaria de pelo menos cinco anos de preparação antes de poder transformar-se num grande player nos mercados globais de lítio.

“É como se os bolivianos estivessem a tentar chegar à Lua ainda antes de construirem um foguetão”, ironiza o alemão, abanando a cabeça. “Para fazer qualquer coisa, vão precisar de pelo menos 700 a 1.000 pessoas altamente qualificadas no Salar de Uyuni. Concordo que é uma oportunidade maravilhosa para eles e por isso mesmo não deveriam desperdiçá-la! Aquela área não é apenas rica em lítio, não esqueçamos o magnésio e o potássio… O potencial é realmente incrível.”

Quanto a preocupações ambientais com os avanços da extração de lítio no Salar de Uyuni, considera-as infundadas, no nível em que a Bolívia consegue atualmente trabalhar. “A produção está limitada à parte menor e ao sul do lago salgado e não exigirá grandes quantidades de água de outras indústrias. Pelo menos por enquanto.”

A K-UTEC pretende continuar a desenvolver a tecnologia para a produção de carbonato de lítio, independentemente do que aconteça na Bolívia. A empresa já está presente em sessenta países diferentes, participando em praticamente todos os grandes projetos de lítio no mundo: incluindo na Austrália, atualmente o maior produtor no planeta, Estados Unidos, China, além da Argentina e Chile – ambos rivais diretos da Bolívia.

O mundo avançou na direção da mobilidade elétrica e já não há volta atrás. Neste contexto, não pode haver progresso sem lítio. “É claro que também estão a ser desenvolvidas soluções alternativas. Mas vão ser precisos muitos anos até que o lítio venha, porventura, a ser destronado”, garante Marx.

“O planeta tem lítio de sobra para responder às necessidades, principalmente se for levada em conta a possibilidade de reciclagem. O mais difícil é tirar os projetos do papel. Depois disso, fica tudo muito mais fácil. O processo de extração de carbonato de lítio precisa de ser otimizado e o custo tem de ser reduzido. Existe uma correlação direta com os preços dos carros elétricos, que ainda são proibitivamente altos. A infraestrutura necessária também é um problema – sobretudo no que diz respeito ao carregamento de baterias, que permanecem relativamente pesadas e não são assim tão eficientes. E depois temos também a questão da vontade política… A guerra pela sobrevivência dos ainda lucrativos projetos de combustíveis fósseis está sempre presente. Mas as fontes renováveis de energia vão acabar por prevalecer: na Europa, na China, nos Estados Unidos. Todos vamos ser forçados a aceitá-lo”, prevê o empresário alemão.

Boštjan Videmšek com o fotógrafo Matjaž Krivic.

Até porque a economia verde vai ser também um domínio dos gigantes globais da energia que até hoje lucraram com a produção de combustíveis fósseis. Há novos atores no mercado, mas o negócio vai continuar a ser controlado pelos “antigos senhores”. Tal como na indústria automobilística, mesmo em parceria com alguns fabricantes chineses e coreanos, serão as maiores empresas de hoje a dominar o mercado de carros elétricos amanhã.

A maioria dos habitantes dos pueblos nas vizinhanças do Salar de Uyuni não conhece o projeto nacional que ali está em andamento. Isolados do resto do mundo, vivem num vácuo informativo quase perfeito. Da melhor forma que podem, cuidam das suas vidas humildes e despretensiosas. Cultivam quinoa e levam lamas a pastar, sendo a desumanidade das suas condições de vida apenas aliviada com grande resiliência e espírito positivo.

“Vivemos a algumas centenas de metros do lago e a poucos quilómetros do local onde o lítio é produzido”, constata Luisa Flores de Laso, uma mulher tradicionalmente vestida, na sua pequena cozinha desarrumada. “Mas ninguém veio alguma vez dizer-nos o que estava a acontecer, nem o que a produção de lítio pode significar para nós. Definitivamente, não estamos ansiosos pelo sucesso da produção. Temos a certeza de que, como sempre, a população local não vai sair realmente beneficiada.”

Esta alegre e robusta mulher de cinquenta anos costumava administrar um hotel na pobre Villa Candelaria. Agora, com o marido Eustácio, sobrevive com biscates na construção civil. Ambos temem o impacto da nova fábrica na população local, cuja sobrevivência depende quase inteiramente da agricultura.

“Não vemos chuva há dois anos!”, dizem-me vários aldeões. “Isso custou-nos a safra de quinoa deste ano, cujo preço já está abaixo do que era há quatro anos. Os lamas também sofreram muito. A agricultura é tudo o que temos… Os jovens foram embora. O que será de nós se a produção de lítio poluir os nossos terrenos?”

Os filhos de Luísa e Eustácio trabalharam algum tempo para a Comibol, no projeto de lítio. Para sermos mais precisos, foram contratados por uma das muitas empresas privadas subcontratadas pela empresa estatal. O mais velho dos irmãos ainda ganha a vida a preparar refeições para os funcionários da fábrica-piloto. O mais novo, soldador das sondas de perfuração, atirou a toalha ao chão há dois anos, desanimado com um ordenado inferior a 400 euros por mais de 12 horas de trabalho diário.

“Os chineses pagam mais – 1.200 euros por mês”, explica Luisa Flores de Laso. “Mas não têm trabalho para os meus filhos, para mim ou para o meu marido. Só estão interessados em ‘especialistas’.”

Eustácio, de 51 anos, explica que no início não se opunha à produção de lítio e defendia que os moradores deveriam ser envolvidos no projeto e ter ali trabalho na construção e na manutenção da fábrica.

“Percebo bem a necessidade de especialistas!”, diz agora, com veemência. “Mas poucos podem ser encontrados neste lugar triste e abandonado por Deus. Há muito trabalho manual para ser feito, e os locais deviam ser os únicos a fazê-lo. Também acho que os representantes da empresa deveriam vir aqui e explicar-nos os riscos ambientais da produção de lítio.”

Eustácio Laso conta que pessoal da Comibol já esteve em Villa Candelaria – mas com o único objetivo de levar a sua água. “Vieram aqui há seis meses e disseram-nos que precisavam de água para a fábrica. Fizeram alguns testes e informaram-nos que estavam prontos para começar a bombeá-la. Bem dissemos que mal temos água suficiente para nós… Mas não quiseram saber. Responderam que a água não era nossa, mas do Estado.”

Eustácio cerra os punhos com indignação. “Se perdemos a água, perdemos tudo! Podemos ser forçados a deixar as nossas casas. Não podemos permitir que isso aconteça!”

A charmosa vila de Colcha-K é a capital da província de Nor Lipez, no sul do Salar de Uyuni. É também a sede local da produção de carbonato de lítio.

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Se tudo correr como planeado, em poucos anos o dormente pueblo de hoje irá transformar-se numa espécie de Dubai ou Doha, numa versão mais pequena e menos ostensiva. Passeando pelas suas ruas de pedra, cumprimentando estudantes e velhos pacatos, é difícil imaginá-lo. No entanto, “o combustível do futuro” vai deixar marcas indeléveis no desenvolvimento de toda a região.

Atualmente, destacam-se três lugares na pitoresca vila, localizada perto de uma importante base militar: a igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, o campo de futebol com relvado artificial e a sede do governo regional – o maior e mais brilhante edifício num raio de 100 quilómetros. O gigantesco prédio do governo é encimado pela estátua de um flamingo, celebrando o pássaro místico de pescoço comprido que tradicionalmente passa vários meses por ano no Salar de Uyuni. Mas desde que começaram as grandes obras no lago, a presença das emblemáticas aves cor-de-rosa na região sofreu uma queda alarmante.

“Até os pássaros perderam a sensação de paz!”, desabafa um dos moradores, revoltado. Mas este é apenas um prenúncio do que está por vir.

“Olhamos para o lago e ficamos com medo”, diz Grover Baptista Ali, secretário-geral da província de Nor Lipez. “Vemos todas as escavações e perfurações, camiões por todo o lado… e a beleza de Salar a perder-se, a ficar irreconhecível.”

Como membro do partido da oposição, o escritório de Baptista Ali – diferente de quase todos os outros onde entrei na Bolívia – está totalmente despido da parafernália de Evo Morales. É tão raro que salta à vista. Através de todas as espécies possíveis de bustos, retratos, posters, grafittis e outros subgéneros da arte de rua, o impetuoso presidente socialista está omnipresente em todo o lado. Afinal, é este o homem que vaticinou um novo amanhecer para toda a América Latina. No entanto, doze anos depois, os primeiros raios de sol só alcançaram ainda alguns (poucos) afortunados.

O partido de oposição de Baptista Ali detém o poder na região de Nor Lipez. “Nem me passa pela cabeça contestar que o lítio representa uma grande oportunidade para toda a economia boliviana. É uma oportunidade que não podemos perder. Mas não devemos deixar que o governo de La Paz roube todos os lucros. As receitas do lítio devem ser distribuídas igualmente, como as receitas geradas pela produção de chumbo e zinco nas proximidades de San Cristobal. De acordo com a lei, a comunidade local tem direito a uma percentagem de quinze por cento. O resto vai para o governo regional de Potosí e, claro, para as autoridades centrais, e dez por cento devem ser reservados para limpeza ambiental. Em 2016, a Bolívia faturou cerca de 1,2 milhão de euros com as vendas de lítio. E nós aqui não vimos nem um único centavo! Nem um centavo!”

Baptista Ali expressa de forma veemente a sua opinião: em suma, que o projeto de produção de lítio tem sido, até agora, apenas um dreno para a região.

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É difícil ignorar a sensação de que o jovem político fala de forma muito menos entusiasta sobre as consequências ambientais da exploração de lítio do que sobre todas as receitas ainda não direcionadas para a comunidade de Colcha-K. Mas isso não é imperdoável – a região permanece escandalosamente subdesenvolvida e como poderia, certamente, utilizar essas verbas para construir escolas, hospitais, estradas e outras infraestruturas básicas.

“Assim não temos motivos para nos entusiasmarmos com o lítio… Estas novas empresas têm pouca necessidade do nosso pessoal, estão interessadas quase exclusivamente em especialistas. Então porque que não investir num instituto especial, onde a população pudesse ser formada para trabalhar nas fábricas de carbonato de lítio? Por que não abrir uma ‘zona industrial’ diferente? Precisamos de dar um passo à frente! Somos totalmente dependentes da agricultura e do turismo. A nossa agricultura precisa de água, e há cada vez menos, a cada ano que passa. A região está a secar rapidamente por causa das alterações climáticas. Produzimos cada vez menos quinoa, e outros fatores também fizeram com que o seu preço caísse. O mesmo vale para os lamas”, explica o secretário-geral.

Como praticamente todos com quem conversei, Baptista Ali é peremptório: a água é absolutamente chave em tudo.

“Já deveria ter soado algum tipo de alarme”, diz. “A fábrica de Llipi está a entrar no Rio Grande, que praticamente já secou. A água que resta está completamente poluída. Mal ouso imaginar o que pode acontecer quando o projeto for ampliado.”

A cada três meses, as autoridades locais recebem um relatório da empresa estatal de produção de lítio. “Informam-nos sobre o que estão a fazer e como isso está a impactar o meio ambiente. Mas é mais ou menos uma formalidade burocrática, desprovida de qualquer significado real. Eu espero que, no final, toda a Bolívia possa lucrar com isto – mas tenho muito medo que a história se repita novamente. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para evitar que isso aconteça. Em breve, os 45 representantes do governo local da região do Salar de Uyuni vão reunir-se. Depois de nos organizarmos, vamos direto para La Paz!”

Nem todos se sentem deixados para trás pelo governo central. A pouco menos de dez quilómetros da fábrica de Llipi fica a pequena cidade de Rio Grande, que vive um verdadeiro florescimento – se é que esse termo pode ser aplicado ao local frio e basicamente acimentado que serve de posto avançado para camionistas.

Rio Grande tem aproximadamente 650 moradores e 500 camiões. Muitas das famílias locais possuem dois camiões, que é o limite legal. Praticamente todos os homens adultos da aldeia conduzem pesados. Unidos sob a bandeira da cooperativa local DELTA Rio Grande, estão a colaborar com a Comibol.

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Tudo nesta cidade estranhamente monótona e estéril – na verdade, pouco mais que um enorme estacionamento para camiões – é adaptado às necessidades da produção de lítio. O único estabelecimento que oferece hospedagem aos visitantes chama-se “The Lithium Hostel”.

Juan Carlos Ali, 44 anos, é um dos 250 camionistas que passaram os últimos cinco anos a transportar “ouro branco” para o governo. Até 2015, o seu trabalho consistia basicamente no transporte de material de construção e terra. Depois a Comibol começou a cavar piscinas de evaporação… e o futuro começou a parecer ainda mais brilhante para os condutores.

“Estou a dar-me bem, muito bem”, diz o robusto e atarracado Juan Carlos, ao lado da sua camioneta azulada e ferrugenta. “Estou a ganhar mais dinheiro do que em qualquer outro lugar. Há muito trabalho para os camionistas aqui. E os turnos são distribuídos de forma justa entre nós. A cooperativa está a cuidar bem das nossas necessidades. Se fosse com uma empresa privada, as coisas seriam diferentes.”

Perguntei ao homem bem-disposto e falador se percebia o quão importante o lítio poderia tornar-se para a sua terra natal. Mas Juan Carlos apenas balançou a cabeça, sem vontade de responder. “Eu não sei nada sobre isso. Só sei que a fábrica de Rio Grande é uma verdadeira benção. Enquanto os trabalhos continuarem a dar de comer a quem aqui vive, por mim está tudo bem. Só espero que as coisas venham a ser assim nas outras cidades e vilas por todo o Salar.”

O sol flamejante põe-se lentamente sobre as maiores salinas do mundo. Vastas e negras sombras, de aparência ameaçadora, descem sobre o chão branco resplandecente. Um vento gelado começa a ganhar força, cortando até ao osso.

“A nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros; a nossa riqueza sempre gerou a nossa pobreza ao nutrir a prosperidade de outros impérios. Na alquimia colonial e neocolonial, o ouro transforma-se em sucata e a comida em veneno.”

As palavras do grande escritor uruguaio Eduardo Galeano, descrevem o que tem acontecido ao seu continente, no livro América Latina: Cinco Séculos de Pilhagem”.

Como será o Salar de Uyuni daqui a cinco anos? O que irá o “ouro branco” fazer da Bolívia?

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