Sempre que consigo, faço desvios em viagens aéreas para ir a outros sítios que, de outra forma, não me levariam a sair de casa propositadamente. Assim, para quem for à Índia, partindo da Europa, como foi recentemente o meu caso (ver texto anterior sobre o casamento do meu amigo Rohit), os países do Golfo Pérsico são um excelente ponto de paragem e uma forma de conseguir ligações mais baratas.
Porquê? Acho que lhe podemos chamar o mercado da oferta e da procura. Com milhões de indianos espalhados entre o território que vai do Kuwait ao Dubai, passando pelo Qatar e Bahrain, é normal que exista uma enorme oferta de voos para as principais cidades indianas e a um baixo custo, pois a procura é muita.
Por isso, acabei por dar por mim no Kuwait, um pequeno país do tamanho do Alentejo, entrincheirado entre o Iraque e a Arábia Saudita. No meu imaginário, o Kuwait era aquela estrada, no meio do deserto, cheia de tanques destruídos com a passagem da Operação Tempestade no Deserto. Gosto de visitar sítios onde a História se fez. Era o meu principal passatempo até ao início dos confinamentos, e tento agora, três anos depois, continuar onde parei.
Ainda não tinha saído do aeroporto e já estava a ter um daqueles momentos de “o que faço eu neste fim de Mundo?”. Acontece-me muito. Consigo encontrar interesse em absolutamente qualquer recanto deste planeta, mas, não raras vezes, quando lá chego questiono-me por que saí sequer de casa.
Um polícia no aeroporto começa a virar a minha mochila e encontra Xanax. Pede-me pela receita médica que, obviamente, não tenho – e pergunta-me então se tenho ataques de pânico. Digo-lhe que sim, no ar. Ele diz que aquilo é ilegal no Kuwait e que posso ser mandado parar na rua e ir para a prisão.
É bom lembrar que estou num país onde drogas e álcool dão pena de prisão e, em alguns casos, sentença de morte. Explico-lhe que se me tirar os comprimidos sobram-me duas hipóteses. Ficar no Kuwait o resto da vida, ou arranjar um autocarro que atravesse o Iraque em direcção à Europa. No avião é que não entro sem aquilo. Ele sorri. É um gordinho de barba, com aspecto de quem está na primeira semana de trabalho e quer mostrar obra feita ao seu superior.
Eu procuro as saídas do humor, é sempre por aí que vou. Certo dia um militar ucraniano, na fronteira com a Polónia, apontou-me uma metralhadora e pediu dinheiro para me deixar seguir. Eu bati nos bolsos e disse-lhe que não tinha notas, e perguntei-lhe se aceitava cartão.
Na impossibilidade de disparar a 100 metros da linha da União Europeia, ele lá me deixou ir sem achar piada ao meu material de comédia. O mesmo sucedeu na fronteira do Egipto e Israel, com três egípcios a dizerem-me que sem pagar extra ia ficar muito tempo ali parado, ao que respondi que por mim tudo bem, podia ficar ali com eles e fazer adeus ao israelita que ainda me conseguia ver na barraca a 50 metros dali. O mesmo israelita que me tinha feito 100 perguntas, entre as quais se eu falava árabe.
Não sei bem por que razão me meto sempre nestas alhadas, mas parece que devo gostar, porque vou sempre lá cair. Ando há meses a ver se convenço alguém a vir comigo a Minsk e, surpreendentemente, ninguém acha a ideia apelativa.
Por fim, o polícia novato lá me deixou sair do aeroporto, depois de falar com o superior hierárquico, que não se quis chatear por quatro Xanax. Quando cheguei cá fora, pensei que uma cervejinha é que era, para aliviar aquele stress, mas lá está, também é ilegal, pelo que bebi antes um café com caramelo, no Starbucks que estava ali em frente. Ah pois… os americanos não deixaram apenas as mangueiras para sugar petróleo quando estavam a “trazer democracia”.
Reparei que as ruas estavam cheias de fervor patriótico. As cores da bandeira por todo o lado, monumentos fechados, carros com bandeiras, crianças com camisolas que diziam “Free Kuwait”. Uma semana de feriados para comemorar o Dia Nacional, o Dia da Libertação, e de alguma forma isso tinha um toque de Carnaval, porque as pessoas faziam guerras de balões de água no meio do trânsito. Estava um pouco baralhado com a História e os parcos conhecimentos de inglês dos locais também não me ajudaram muito.
Dei uma de Relvas… e fui estudar. Os dias 25 e 26 de Fevereiro marcam, respectivamente, o Dia Nacional e o Dia da Libertação do Kuwait. O primeiro comemora a chegada ao trono, em 1950, de um emir com cerca de dezassete nomes, que ficou famoso por ter assinado o tratado que acabou com o protectorado britânico. O segundo, como se perceberá pelo nome, regista o dia em que os americanos “devolveram a democracia” e correram com os iraquianos.
Impecável do ponto de vista do sincronismo temporal a entrada do exército aliado no Kuwait, permitindo juntar duas datas importantes numa semana e reduzir assim os custos com as festas para as gerações vindouras.
Paradas militares, polícia por todo o lado, barcos a dar espectáculo com canhões de água, aviões de combate a executar manobras nos céus da capital. Uma demonstração de poder bélico algo patética, para quem perdeu o controlo do seu território em apenas dois dias e que, sem os poços de petróleo que normalmente ajudam às “devoluções de democracia”, seriam hoje mais um quintal anexado como aqueles no Terceiro Mundo que ninguém quer saber.
Mas como tinham petróleo, já se sabe, passam a ser um “parceiro do Mundo Livre e Democrático”.
Ainda assim compreendo a festa da libertação. Para os locais, mesmo sabendo que 1991 se resumiu a jogos de poder pela conquista de combustíveis fósseis, a consequência é que, de facto, recuperaram a sua independência. Não a liberdade ou democracia, que nunca as tiveram, mas livraram-se de um invasor assumido.
Já a celebração pela ascensão ao trono do emir dos vários nomes é que não percebo bem.
O que é que há para comemorar num regime onde a liberdade de expressão é controlada, os direitos (especialmente das mulheres) cada vez mais restringidos e o direito a governar nasce no berço?
O que celebra uma sociedade absolutamente desigual, onde uma minoria de 1,5 milhões (os nativos do Kuwait) é controlada por uma família pornograficamente rica, e tudo o que cresce e se desenvolve é providenciado por um exército de três milhões de escravos da era moderna, entre os quais cerca de um milhão de indianos?
O que comemora uma sociedade tão desigual como esta, tão desequilibrada e tão injusta?
Os albaneses, em maioria no sul da Sérvia, reclamaram um país e surgiu o Kosovo.
O Donbass vai pelo mesmo caminho.
O argumento de maiorias que crescem num território e depois exigem a independência ou a anexação são clássicos da História. Tirando no caso dos curdos e dos palestinianos, normalmente este argumento colhe quando apoiado por algum império. Dei por mim a pensar que todos estes escravos, que já são a maioria nos países do Golfo Pérsico, ainda podem um dia servir de desculpa para a Índia os anexar.
Era engraçado ver ditaduras a serem anexadas por democracias e os Impérios do Bem e do Mal a pensarem se alinhavam e repartiam o petróleo (ou “liberdade” como George Bush pai lhe chamou) ou se entravam em novas guerras pelo controlo total.
O mundo seria bem melhor sem petróleo. Sem castas. Sem escravos.
É nestas alturas que penso no pequeno mas existente elevador social em Portugal. Há hipótese, há alguma esperança, de se evoluir pelo trabalho.
Ali, no Kuwait, não. Se nascem miseráveis, vão morrer miseráveis, e esgotados de trabalho até ao osso.
Não sei se é isto a que se chama choque de culturas, mas sei que me ajuda a perceber a sorte que tive por nascer no lado certo do Mundo. Pelo menos isso.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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