Sempre que as televisões, as rádios ou os jornais falam de sangue, fico com o meu a ferver.
Acreditava eu que, sendo um “bem” imprescindível, estaria protegido pelo Estado, de modo a que ninguém pudesse beneficiar com as fragilidades de cidadãos.
Negociar em sangue é próprio de vampiros, como bem cantava Zeca Afonso.
Por isso fui, e muitos da minha família são, dadores de sangue.
Não conheço maior prova de cidadania do que partilhar, anonimamente, sangue para ser utilizado por quem dele necessita sem nos preocuparmos em saber quem serão os beneficiados.
Nem esperar contrapartidas.
Dar sangue a alguém doente, sem sabermos quem, desconhecendo a cor da pele, a conta bancária, a ideologia política, a crença religiosa, a idade, o género, do receptor, é solidariedade pura.
E são milhares os portugueses que o fazem.
Por isso, repito a primeira frase da crónica, “sempre que as televisões, as rádios ou os jornais falam de sangue, fico com o meu a ferver”.
Sei que a nossa imprensa só faz manchetes quando algo de mal acontece.
Se falam de sangue, algo aconteceu de muito mau.
Há uns anos foi noticiado que milhares de colheitas de plasma, recolhidas de dadores, seguia para o lixo dada a incapacidade de armazenamento.
Isso porque – acredite quem quiser – “as câmaras de frio, para conservar o plasma, estavam a ser usadas como armazém para guardar, por exemplo, papéis”.
Em dois meses, informava o jornal Público, cerca de 40 mil unidades tinham sido inutilizadas, nos três centros regionais do sangue (Lisboa, Porto e Coimbra).
Num dos mapas de produção, constava, na coluna dos “componentes inutilizados”, relativa ao plasma, a razão para o não aproveitamento: “incapacidade de armazenamento”.
Cada bolsa tinha entre 180 a 250 mililitros de plasma.
Curiosamente, o responsável do Instituto Português do Sangue não se mostrava preocupado.
Segundo ele, “estão já neste momento armazenadas em Lisboa 22.300 unidades de plasma”
E acrescentou que “há, actualmente, uma reserva, à disposição dos hospitais, de mais 900 unidades que cumprem com a segurança da quarentena”.
Questionado sobre a quantidade de plasma que ainda é desperdiçado, limitou-se a responder: “Para que todas as colheitas sejam aproveitadas, ministério e IPS estão a desenvolver os procedimentos necessários para a aquisição de viaturas equipadas, ou equipamentos para as já existentes, que permitam o transporte de plasma congelado entre regiões, com todas as garantias de qualidade e segurança”.
Depois, para que os jornalistas se recordassem que estavam em Portugal, alertou, quando questionado sobre a data prevista para a aquisição de tais viaturas: “Está em curso a avaliação dos sistemas de refrigeração que sejam mais adequados, não estando ainda aberto o procedimento. Não temos ainda uma previsão da data para aquisição das mesmas.”
Os números, na altura, indicavam que Portugal produzia, com as suas dádivas de sangue, 450 mil bolsas de plasma por ano, sendo que os hospitais apenas precisavam de 90 mil.
Que não eram aproveitadas.
Sabia-se que, se fossem exportadas, poderiam render seis milhões de euros.
Mas… não eram porque, repete-se, as câmaras de frio onde poderiam ser armazenadas estavam a ser utilizadas para guardar papéis.
Para não adoecer, e com medo de ir parar a um hospital dirigido por gente com esta inteligência, optei por deixar de ler qualquer notícia onde a palavra sangue aparecesse.
Quebrei essa norma, hoje.
Queria saber como é que é possível haver uma “máfia do sangue”.
Como é que alguém se prontifica a pagar meio milhão de euros para não ser julgado por negociatas com sangue?
A última notícia que eu tentei ler dizia que esse produto, que eu pensava ser, em grande parte, oferecido por dadores, e que se deitava para o lixo por falta de equipamentos para o guardar, já que o que havia estava destinado a outros fins, afinal era fonte de riqueza e, mais, era a base de processos crime por corrupção e branqueamento de capitais.
Crimes esses que, obviamente, prescreveram.
Os implicados estão, agora, acusados de falsificação de documento e recebimento indevido de vantagem.
Até que estes crimes também prescrevam.
É gente de sangue frio e que sabe esperar.
E, claro, rica!
Ainda os verei a encher as tulhas, beber vinho novo e dançar a ronda no pinhal do rei.
Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
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