Está previsto que o antigo secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, venha a Lisboa por ocasião do encontro do Grupo Bilderberg, que terá lugar poucos dias antes de cumprir os 100 anos de vida. Faça-se então uma reflexão para os próximos 100 anos da nossa vida. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.
Este é o Mundo dele. Henry Kissinger, antigo Secretário de Estado norte-americano – o equivalente a ministro dos Negócios Estrangeiros –, vai cumprir 100 anos de vida no dia 27 de Maio. E está previsto que, uma semana antes, esteja em Lisboa para participar na reunião do Grupo Bilderberg – que deverá ocorrer entre os dias 17 e 20 de Maio.
Quando digo que este é o mundo dele é apenas porque é impossível dissociar a sua figura dos maiores eventos que moldaram a sociedade nas últimas dez décadas. É claro que não podemos colocar Kissinger no centro do Universo desde 1923, pois só começou a ter influência vários anos depois. Mas o próprio, como produto de uma certa época, acabou por ser o reflexo do muito que acontece nos dias de hoje.
Nascido como Heinz Alfred Kissinger, em Furth, na Baviera, os pais fugiram da perseguição aos judeus, em 1938, e Kissinger, depois de se ter tornado cidadão americano em 1943, com 20 anos, serve no Exército norte-americano. Tendo-se valido bem da sua capacidade de falar alemão – uma língua que ainda hoje se nota no seu característico tom de voz metálico – foi na inteligência militar que iniciou a carreira, que, digamos, nunca mais deixou de exercer.
Formou-se na Universidade de Harvard e cedo deu nas vistas, sobretudo quando, em 1957, publicou o livro Nuclear weapons and foreign policy (Armas nucleares e política estrangeira), uma edição com o apoio do Council on Foreign Relations (CFR), a organização privada que, basicamente, pensa e forma os futuros líderes da América no que diz respeito à política exterior. E, como se sabe, para controlar a política exterior, é preciso primeiro garantir a interior.
Data também desse ano de 1957 a sua primeira participação numa reunião do Grupo Bilderberg, a organização não eleita que, desde 1954, reúne os principais políticos e empresários da Europa e Estados Unidos em encontros anuais, sem direito a escrutínio público, onde fazem o seu networking.
Discutem entre si, sem ser necessário tomarem decisões, pois todos eles acham que são os melhores do mundo e sabem melhor do que ninguém o que deve ser bom para todos nós. Os órgãos de Comunicação Social por si controlados, bem como os meios de propaganda das suas democracias, encarregar-se-ão depois de formarem o consenso necessário à aceitação pública das suas ideias pelas grandes massas. Algo há muito estudado.
O homem que vai chegar a Lisboa no ano do seu centésimo aniversário, trabalhava ainda com os irmãos Rockefeller no tempo do presidente Dwight Eisenhower, aquele que quando deixou a Casa Branca, em 1960, avisou contra o “complexo militar-industrial” que controla a política dos Estados Unidos. Após a morte de Kennedy e os anos de Johnson, eis que Kissinger chega a Washington com o novo presidente, Richard Nixon.
É então o tempo em que Kissinger impõe ao mundo a posição mais perversa que a política internacional criou e da qual nunca soube como sair: a “Realpolitik”. Com ela não há ideologias honestas, não há políticas sociais humanas, não há solidariedade internacional verdadeira, não há relações comerciais sustentáveis, não existem trocas de experiências culturais genuínas. Há apenas o poder dos poderosos e o que é prático e imediato para garantir a sua sobrevivência.
É claro que foi Kissinger que conseguiu estabelecer as boas relações com a China comunista de Mao, mas isso também é parte de um outro termo político, que é a “Détente” – palavra francesa que remonta ao período de paz precária entre a França e a Alemanha, antes da I Guerra Mundial. Chama-se, em bom português, “a paz podre”.
Não preciso mencionar aqui todas as polémicas internacionais, os apoios a ditadores e golpes de Estado onde o nome de Kissinger parece estar sempre associado. Prefiro, nesta hora de soprar as 100 velinhas, pensar nos efeitos da sua passagem pela Terra e naquilo que ainda podemos salvar para o nosso futuro, quando ele deixar de estar fisicamente presente entre nós.
Poderemos dizer, olhando para os argumentos belicistas que temos assistido ao longo do último ano, com a guerra na Ucrânia, a uma ausência de equilíbrio entre os poderes das principais potências nucleares. O mundo poderia viver a Paz da Guerra Fria.
Poderíamos ainda dizer que fazem falta mais homens com a visão pragmática de Henry Kissinger: frios e calculistas. Despidos de empatia na hora de fazer diplomacia. Mas também estou convencido que foi essa mesma política que nos conduziu a nomes que surgiram como falsos salvadores de uma certa comunidade de descontentes e de pólos políticos extremistas, como Donald Trump e Vladimir Putin.
Não foram 100 anos de solidão, como no romance. São 100 anos da vida de um homem que vai demorar mais de 100 anos a corrigir a sua visão e os efeitos nefastos da mesma. Mas o positivo, se o quisermos tornar possível, é que deveríamos começar já a pensar, finalmente, num novo mundo, sem Kissinger, a partir de Maio. Devemos isso para os próximos 100 anos.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
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