Bas Von Benda-Beckmann, historiador

‘Depois da sua captura, a história de Anne Frank é absolutamente terrível’

por Maria Afonso Peixoto // Março 8, 2023


Categoria: Entrevista P1

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A trágica história da jovem judia Anne Frank percorreu o Mundo e comoveu gerações. Contudo, o famoso Diário da jovem judia termina quando ela e a sua família – o pai, Otto, a mãe, Edith, e a irmã, Margot – e mais quatro clandestinos num “Anexo Secreto” são capturados no final de 1944. Por isso, nada ela escreveu sobre as suas experiências nos campos de concentração. Depois do Diário é a obra que, fruto da investigação de quatro historiadores da Casa de Anne Frank, em Amesterdão, revela os passos que se seguiram. Um dos seus autores, o holandês Bas Von Benda-Beckmann, esteve em Lisboa e conversou com o PÁGINA UM sobre estes oito seres humanos que caíram nas garras do Terceiro Reich.


O Diário de Anne Frank vendeu mais de 30 milhões de cópias. Ainda havia algo mais para dizer?

Boa pergunta. Eu escrevi o livro em conjunto com colegas da Casa de Anne Frank, e uma das nossas missões é contar a história de vida de Anne Frank tão integralmente quanto possível. E este livro foi, obviamente, uma parte muito importante dessa tarefa. O seu diário é muito famoso, e milhões de pessoas em todo o Mundo o leram, mas a história dela não termina aí, certo? E uma parte muito importante começa no momento em que o diário termina. É um período da sua história onde há muitas lacunas, porque já não temos o diário. Até à captura, conseguimos ver pelos nossos olhos o que lhe aconteceu, e a partir daí já não. Houve alguns jornalistas que exploraram este tema e que procuraram testemunhas oculares, e as entrevistaram, o que é significativo, mas mesmo assim não conta a história de forma tão completa como precisaríamos. Portanto, o que fizemos foi tentar reunir todas as fontes disponíveis, como relatos de testemunhas oculares, mas também pedaços de informação que a administração alemã mantém, bem como outros diários e cartas dessa época. Juntámos tudo isso e tentámos reconstruir de modo tão preciso quanto possível aquilo que realmente aconteceu. E perceber também o que é que aconteceu aos outros ocupantes do Anexo Secreto, quais eram as condições nos campos de concentração, e para onde foram levados. Porque assim também vemos a verdadeira importância da sua história, que não é só o diário, mas também o que aconteceu posteriormente, e onde, como e quando é que eles foram mortos.

Bas Von Benda-Beckmann

Nessa tarefa de reconstrução, quais foram os maiores desafios? No livro abordam os problemas que advêm das testemunhas oculares, que muitas vezes providenciam relatos contraditórios, para além do grau elevado de subjectividade.

Sim, é complexo. Aquilo que tentámos fazer foi, entre nós, verificar as fontes. Se temos testemunhas oculares que estiveram juntas na mesma altura, as suas histórias complementam-se ou contradizem-se? E quando alguma coisa é contraditória, qual será a versão mais provável? Portanto, tentámos ser absolutamente transparentes. Há coisas sobre as quais temos a certeza, e aí dizemos “isto foi o que aconteceu”, e outras vezes expomos as diferentes versões do que poderá ter acontecido, de acordo com uma testemunha, e o que poderá ter acontecido, de acordo com outra. E salientamos os pontos em que os seus testemunhos se contradizem.

Houve algum aspecto surpreendente no vosso trabalho de pesquisa? Descobriram algo que não estivessem à espera?

Há um par de coisas muito importantes e inéditas que vieram à luz com esta pesquisa. Durante muito tempo pensámos que Anne e Margot Frank morreram no final de Março de 1945; e através de uma reconstrução cuidadosa do que lhes aconteceu, pelo que relataram as testemunhas que as viram pela última vez, e que falaram sobre as doenças e as mortes de que elas padeceram, conseguimos saber que, na verdade, faleceram mais cedo, no início de Fevereiro. E isto pode parecer um pequeno detalhe, mas eu penso que o simples facto de ser tão difícil reconstruir a vida de alguém nesta situação e descobrir coisas básicas como quando foi o momento da sua morte, torna importante tentar fazer precisamente isso. Houve uma tentativa deliberada de apagar a história destes seres humanos e dos factos sobre o que lhes aconteceu. Portanto, desfazer isso e tentar juntar os pontos é algo que considero muito importante, não apenas por eles mas por todas as vítimas do Holocausto.

Também destacam que alguns sobreviventes mostraram um certo desconforto e ressentimento por a história de Anne Frank se ter tornado tão conhecida, receber tanta atenção, quando é apenas uma entre milhões de vítimas do Holocausto. Como interpreta isso?

Em primeiro lugar, eu consigo compreender esse sentimento, porque é verdade que a história desta família é muito importante, e toda a gente a quer ouvir, mas há também muitas outras histórias que foram esquecidas. E esse ressentimento também existe porque essas testemunhas oculares são entrevistadas e os entrevistadores perguntam-lhes muito sobre Anne Frank e a sua família, quando elas próprias também viveram algo muito dramático e horrível. Mas interessante é observar que estas vítimas não mostram apenas ressentimento, mas também ambiguidade, porque reconhecem a importância de Anne Frank como um símbolo na transmissão destas histórias e como alguém que é importante para espalhar a palavra sobre o que lhes aconteceu.

Quais os motivos, na sua opinião, para a história de Anne Frank, em particular, se ter tornado tão conhecida?

De muitas formas, ainda é um mistério. Penso que ajudou ela escrever realmente bem; portanto, o diário, se o lermos agora, mostra-nos mesmo o crescimento de uma jovem, que escreve sobre as suas emoções de uma forma muito vívida, e acho que isso ressoa em muitas pessoas. A certa altura simplesmente se tornou algo grande, fez-se uma peça de teatro e um filme, e tudo isso contribuiu para tornar a sua história famosa. Mas a pergunta é legítima: porque é que acontece a uma história e não a outra? É sempre muito difícil de dizer, e eu penso que talvez, se falarmos dos anos 1940 e 1950, quando a história de Anne Frank começou a tornar-se conhecida, provavelmente ajudou o facto de o diário não ser sobre o Holocausto. O diário é sobre uma rapariga num esconderijo e sobre a perseguição aos judeus, mas termina no momento em que o nosso livro se inicia. Não só na Holanda, mas noutros países também, não havia muito espaço para contar histórias horríveis sobre as vítimas e sobre o Holocausto em si, logo a seguir ao fim da guerra. O Diário é sobre esperança, e transmite muita positividade, enquanto que, se lermos o que sucedeu depois da sua captura, não existe qualquer espaço para positividade. Depois da sua captura, a história de Anne Frank é absolutamente terrível.

Aborda também as hierarquias que se estabeleciam dentro dos campos, e dos kapos, que eram prisioneiros, alguns deles judeus, que exerciam a função de guardas. Porque é que o regime nazi criou esta dinâmica, em que uns prisioneiros obtinham privilégios e podiam mandar nos outros?

Essa era uma parte da perversão no sistema dos campos, em que se dava a alguns prisioneiros poder sobre os outros, estimulando também que se tratassem mal entre si. A maioria dos kapos em Auschwitz não eram prisioneiros judeus, eram polacos ou presos políticos ou criminosos de guerra. Mas no campo de Westerbork, por exemplo, que foi o primeiro em que os Frank estiveram, aí já eram judeus, porque a maioria dos prisioneiros eram judeus. Mas isto era parte de um sistema mais abrangente de hierarquias, em que eram concedidos “privilégios” a algumas pessoas, o que acabava por ajudá-los a sobreviver aos campos. E os restantes, que não tinham estes privilégios, tinham uma experiência muito mais dura e menores chances de sobreviver. Portanto, era uma parte da realidade da vida nos campos, e penso que também assumiu um papel muito importante nas vidas dos ocupantes do Anexo, porque no caso de Peter van Pels – o rapaz que tinha mais ou menos a idade de Anne –, quando ele foi enviado para Auschwitz, através de alguns contactos conseguiu um trabalho muito bom como carteiro. Portanto, ele não era um líder nem um kapo nem nada do género, mas também estava numa posição privilegiada, porque podia abrir encomendas e tinha de desempacotar a comida e levá-la para o staff da cozinha, e assim conseguia muito facilmente guardar algum alimento para si. E, além disso, estava em posição de ajudar Otto Frank, que ficou doente em Auschwitz e teve de ir para o hospital, onde não havia cuidados médicos, por isso ele foi apenas deixado lá. Otto ficou muito dependente de Peter, que tinha uma posição que lhe permitia andar pelo campo e visitá-lo e dar-lhe comida extra. E isto foi muito importante para a sobrevivência de Otto. Por isso, sim, a posição em que se era colocado e o trabalho que se conseguia tinham um papel preponderante nas hipóteses de se sobreviver.

Também destaca aqueles que eram os primeiros a chegar aos campos, que se tornavam uma espécie de veteranos e podiam deter alguma vantagem sobre os que vinham depois.

Sim, isso é verdade, sobretudo para o campo de Westerbork. Os kapos de lá eram quase exclusivamente refugiados judeus da Alemanha, enviados para este campo durante o final da década de 1930, portanto, antes da invasão da Polónia. Era um campo de refugiados antes de os alemães o tornarem num campo de trânsito para as deportações. Por isso, alguns destes judeus já lá estavam no campo e, quando se tornou num campo de trânsito, eram os prisioneiros mais antigos. E eles conseguiram esses trabalhos mais cobiçados, e como eram alemães, falavam a língua, por isso era mais fácil para os guardas da SS [abreviatura de Schutzstaffel, autoridades do regime nazi] – que eram muitos poucos nos campos –, e para os chefes, trabalhar com eles. Portanto, era muito claro que estes prisioneiros mais velhos se tornaram nesta espécie de classe mais alta, responsável por guardar os restantes prisioneiros.

Portanto, todos esses factores aumentavam consideravelmente as hipóteses de sobrevivência.

Exactamente. E vemos, de uma forma muito clara, no caso de Peter van Pels [um dos ocupantes do Anexo Secreto] que esses privilégios podiam perder-se muito abruptamente. Quando Auschwitz estava prestes a ser libertado, e todas as pessoas do campo foram evacuadas e postas em marchas de morte para os outros campos – Otto estava no hospital e, por isso, ficou para trás –, Peter foi levado para Mauthausen, e aí perdeu todos os privilégios. Passou a estar num novo campo, as regras eram diferentes, e voltou outra vez à estaca zero. E nós também utilizámos a entrevista de outro rapaz judeu da Holanda com o mesmo percurso e que teve o mesmo tipo de posição em Auschwitz, e ele explica o choque que foi perder a posição que tinha, e caminhar na marcha da morte, ser maltratado e agredido. Mal sobreviveu. Esse rapaz sobreviveu, mas Peter não aguentou. O mais trágico é ele ter sobrevivido até à libertação do campo, mas, poucos dias depois, faleceu.

Campo de concentração de Bergen-Belsen, onde Anne Frank morreu em Fevereiro de 1945.

Outra parte que chocou muitas pessoas foi a existência de guardas femininas nos campos, capazes de cometer actos de grande crueldade. Qual era o papel destas mulheres?

Na maioria dos campos, os homens e as mulheres eram separados uns dos outros. Em muitos dos campos, as zonas onde as mulheres ficavam eram fiscalizadas por mulheres. Não eram guardadas apenas por mulheres, mas as mulheres desempenhavam um papel importante nessas áreas.

Para o regime nazi era relevante serem mulheres a vigiar outras mulheres?

Sim, mas não era algo exclusivo dos nazis; era algo bastante comum de se fazer, optar-se por ter guardas femininas a supervisionar prisioneiras. Essas guardas-mulheres foram criadas e treinadas entre os nacionais-socialistas nesta linha de tratamento duro e de radicalização, numa forma muito semelhante aos homens. Acho que esta perplexidade sobre o papel dessas mulheres talvez diga mais sobre o que nós pensamos que elas deveriam ser. Se pusermos pessoas – sejam homens ou mulheres – neste tipo de treino e de pensamento, que vêem os prisioneiros como não sendo humanos como nós, é algo que pode acontecer. De facto, creio que, depois da guerra, as guardas-mulheres em particular foram tratadas como se fossem loucas, enquanto que, relativamente aos homens, se esperava mais que eles fossem violentos sem que isso fosse visto como fruto de alguma perturbação mental. Nos processos em tribunal depois da guerra, vemos que estas mulheres foram frequentemente tratadas como sendo loucas.

A proporção de guardas masculinos e femininos era semelhante?

Não, não, havia muitos mais guardas masculinos do que femininos.

Também é interessante que, como é referido várias vezes no livro, Otto Frank, e outros sobreviventes, não se tenham estendido muito nos seus depoimentos e não falaram sobre as suas experiências com detalhe…

Sim, seria de pensar que Otto Frank providenciaria um depoimento mais extenso. E eu acho que isso de pedir-se às pessoas que nos contem as suas histórias de vida em grande detalhe é algo que nós, como sociedade, só começámos a fazer já depois de ele ter morrido. Portanto, nós vemos projectos como o USC Shoah Foundation, ou o History Project nos Estados Unidos, em que pedem às pessoas para testemunhar durante horas e horas sobre o que lhes aconteceu, mas isso só começou por volta dos anos de 1990. Então, nós vemos com frequência que estes testemunhos mais iniciais não são tão detalhados como os testemunhos posteriores. Creio também que Otto acreditava em contar o que lhe aconteceu, a ele e aos judeus em geral, utilizando o diário da filha. O Diário foi algo ao qual ele dedicou a sua vida. Ele estava disposto a falar um bocado sobre a sua experiência, mas o mais importante sempre foi o diário de Anne, a história dela. De resto, talvez se devesse também a razões psicológicas, e definitivamente terá que ver com o trauma por causa de tudo o que passaram.

Isso obstaculizou de alguma forma a investigação do Holocausto?

Um obstáculo… Sim, por vezes queríamos falar mais sobre o que aconteceu. Felizmente, temos outras testemunhas que tiveram vidas longas e foram entrevistadas já após a morte de Otto, e que complementam a história contando as suas experiências. Alguns amigos de Otto deram testemunhos muito detalhados sobre como sobreviveram juntos a Auschwitz, e como tentaram não desistir. Portanto, sim, tivemos que olhar para outros depoimentos.

Já se passaram quase 80 anos desde o fim da Guerra, e este livro ainda traz novos dados sobre esta já tão conhecida história. Ainda há margem para novas desenvolvimentos no futuro?

É sempre difícil de dizer. Já percorremos um longo caminho, sobretudo quanto ao período nos campos. Surpreender-me-ia se descobríssemos algo completamente novo para acrescentar a esta história, até porque este livro não é apenas o resultado da nossa pesquisa para a Casa de Anne Frank, mas também reúne tudo o que fizemos e pesquisámos durante as últimas décadas. Portanto, seria surpreendente encontrar algo novo, mas nunca temos certeza na investigação histórica. É sempre possível que novas informações se revelem. Por outro lado, nas biografias destas pessoas, que terminam nos campos de concentração, penso que há mais terreno para desbravar relativamente às suas vidas na Alemanha antes de terem sido obrigadas a fugir para a Holanda, e ao período que antecede. Nunca se sabe. Da família Frank, claro, já sabemos bastante. Mas dos outros ocupantes do Anexo e dos ajudantes, acho que ainda haverá mais coisas para contar, sim.

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