O meu camarada de jornal Luís Gomes, economista de bandeira liberal, escreveu no seu último texto publicado no PÁGINA UM um conjunto de perguntas que deveriam ser colocadas na Comissão de Inquérito à TAP ou, como ele lhe chamou, “bancarroteira nacional”.
Eu ainda sou do tempo em que os liberais andavam escondidos no PSD e no CDS e, ainda a medo, combinavam reuniões secretas nos corredores, quando se encontravam com os tapetes debaixo do braço para rezarem virados para os mercados.
Agora, com um partido próprio e quase duas mãos cheias de deputados, parecem os gajos da Herbalife a vender pastilhas para emagrecer, ou lá o que se vende na Herbalife. Se calhar são ervas, não sei.
Ainda assim, admito, eu gosto de ler liberais. É o meu guilty pleasure. Um pouco como aquela música das Spice Girls que passava na rádio na década de 90. Uma pessoa batia o pé, mas fingia que não gostava.
E gosto de os ler porque, se pensarmos bem, a vida aqui no planeta é dura, a luta é constante e os problemas bem reais. Aqui e ali, ler histórias de Nárnia, pelo menos a mim, transporta-me para mundos coloridos e permite-me alhear das dificuldades do dia-a-dia. Dispensá-los-ia, aos liberais, se o Benfica jogasse todos os dias, mas as pernas do Rafa não aguentariam tanta pancada.
E pancada foi exactamente o que o meu camarada Luís deu na TAP. TAP, é esse o nome, não é “bancarroteira nacional”. Bancarrota nacional foi a década e meia de dinheiro público despejado na banca privada, quando a direita, que incluía os liberais envergonhados na altura, nos garantiu que havia “risco de contágio dos mercados”.
Milhões deitados numa sarjeta para aguentar uma família de corruptos, manter alguns segredos de Estado e aumentar as fortunas de quem já era rico. Que serviço foi prestado aos portugueses nessa injecção de capital? Nenhum. Conseguiram perder dinheiro investido, ficar sem poupanças, ver administradores distribuírem prémios entre si e hoje, como prémio, lutam contra as taxas de juro para não perderem as suas casas.
Uma das dificuldades no debate com a nova vaga de liberais portugueses é que, mal nos começam a vender uma teoria, ela já está a falhar num sítio qualquer. Se nos falam em saúde e perguntamos se é o modelo “cada um por si e Deus por todos” que vigora em Meca (EUA), dizem que não, que optam pela versão escandinava.
Depois, quando percebem que na versão escandinava é tudo público, apontam para os Bálticos. Quando os Bálticos chegam aos dois dígitos de inflação, dizem que o Brasil é socialista. Quando reparam que o Bolsonaro é o Presidente, apagam o vermelho do cartaz e dizem que precisamos de menos Estado.
Nisto surge a covid-19 e o Cotrim grita com o Costa na Assembleia para lhe dizer que o apoio do Estado às empresas está a demorar muito. A dada altura, uma pessoa pede só para sair do carrossel e decide que o Liberalismo é como uma discussão com a mulher. Um gajo concorda com tudo só para não ter que ouvir mais.
A TAP, por muito que custe admitir a quem a desdenha, presta um serviço ao país e à economia. Transporta pessoas, dá emprego a vários milhares direta e indiretamente. A lista de fornecedores nacionais da TAP é coisa para fazer mossa ao fundo de desemprego, no dia em que conseguirem acabar com ela.
E quando digo fundo de desemprego, estou a partir do princípio que a Iniciativa Liberal não será Governo por essa altura porque, se for esse o caso, então refiro-me ao acolhedor espaço que sobrar debaixo da Ponte 25 de Abril.
O Luis faz várias perguntas, essencialmente sobre medidas de gestão e desperdício de dinheiro, a partir de 2015, altura em que a TAP voltou para a esfera pública. Não há nada de errado com as perguntas, tirando o facto de não incluírem mais um punhado de dúvidas sobre o período anterior e a forma como também pagámos para a TAP ser privatizada.
Deduzo que não se possa tocar no Governo de Passos. Na narrativa liberal, afinal, Pedro de Massamá era o homem que cortava nas gorduras do Estado. Pelo menos, naquelas que aqueciam os trabalhadores. Já na clientela habitual, nem tanto.
Mas sem me desviar muito e voltando às questões, elas encerram em si mesmas a razão pela qual me aborrecem textos difamatórios da TAP. É que, por norma, classifica-se a companhia pelos actos de gestão de um punhado de boys, lá colocados por PSD e PS, consoante o momento governativo. E isso é de uma tremenda injustiça.
A TAP são milhares de pilotos, pessoal de bordo, assistência em terra, engenheiros de manutenção, técnicos de aeronaves e outros que, na minha opinião, prestam um serviço insubstituível ao país. No fim da lista, lá aparecem meia dúzia de boys engravatados que vão arrastando a companhia para a lama, com o patrocínio do Governo, fazendo da TAP arma de arremesso de qualquer oposição populista e, pior, prejudicando os trabalhadores da companhia que são alheios e todos estes folhetins.
Mas a TAP, a transportadora nacional que é das poucas empresas que de facto transportam o nome de Portugal pelo mundo fora, não pode ser misturada ou julgada por actos criminosos de gestão de uma minoria. Ou, como se diria num debate televisivo, não podemos mandar o menino fora com a água suja do banho.
Sempre que um liberal grita pelo encerramento da TAP, sem explicar o que faria com os milhares de desempregados, dizendo que o mercado tratará de ocupar os slots, eu, emigrante confesso, puxo do tapete, aponto-o para Wall Street e começo a rezar aos deuses da mão invisível. Adoro explicacões de como o mercado tudo resolve até percebermos que não é bem assim.
Quando ouço a malta da IL a falar de mercados, penso sempre no gregos da antiguidade que esperavam pelo trovão de Zeus para se aquecerem. A fé é semelhante, tirando a parte de “os mercados” não serem uma entidade divina (para os não-liberais, entenda-se).
Por exemplo, o deus dos mercados, no caso do desaparecimento da TAP, funcionaria da seguinte forma:
a) se turistas quisessem vir para Portugal (procura), alguma EasyJet haveria de aparecer (oferta). Neste caso, portugueses que estivessem na zona de onde partiam os turistas, conseguiam transporte.
b) se os turistas se aborrecessem dos pastéis de nata ou dos cimbalinos e quisessem ir pregar para outra paróquia (quebra na procura), a Easyjet ia-se embora, a oferta reduziria e os portugueses ficariam com menos hipóteses de se movimentarem.
Ou seja, Portugal, um país periférico da Europa, sem ligação por ferrovia ao Velho Continente (12 horas até Madrid não contam como ferrovia uma vez que é o tempo para lá chegar de bicicleta) ficaria refém dos interesses financeiros do mercado para ter rotas aéreas. Não é um negócio extraordinário para um povo que tem 1/3 dos seus fora de portas.
O que dizem os liberais neste caso do risco do mercado? Não há problema porque, nesse caso, o Governo pagaria a uma companhia privada qualquer para garantir rotas com a diáspora. Ora…pagaria quanto? E já agora, companhias pagas por governos é aquilo a que se costumam chamar companhias de bandeira ou seja, a TAP.
Essa conversa de acabar com a TAP para se pagar à Ryanair (o O’Leary passa a vida a chorar por subsídios e a chantagear aeroportos com taxas) parece a discussão do SNS onde a IL nos tenta convencer que, liberdade, é destruir a saúde pública e fazer o Governo pagar as nossas consultas nos hospitais privados.
O mantra liberal é sempre o mesmo: desviar dinheiro público para o bolso de uma minoria de magnatas do setor privado. É esta a base da teoria “os mercados resolvem” e aplica-se numa escola, num hospital ou nas asas de um avião.
Nem vou entrar na discussão da importância que a TAP tem para a comunidade emigrante (que representa 2% do PIB), no serviço que a TAP presta na ligação aos países de língua portuguesa, na coesão territorial com as regiões autónomas, nos prémios de engenharia que recebe ou no facto de estar entre as cinco companhias mais seguras do mundo.
Era conversa para umas horas e vocês têm que ir à vossa vida produzir, para a mão invisível sacar depois. Nunca uma empresa de tamanho prestígio foi tão mal tratada.
Miguel Sousa Tavares disse, no seu podcast, que a comissão de inquérito não deveria ter elementos do PS e do PSD. Concordo. Enquanto os outros lá estarão a fazer perguntas, os deputados de PS e do PSD tentarão despachar culpas para o vizinho.
Não sei o que sairá desta Comissão de Inquérito à TAP mas pergunto-me, se a solução para evitar mais indemnizações milionárias, nomeações de boys, desvio de dinheiro na compra de aviões e escândalos do género, é mandar milhares de trabalhadores para a rua?
Ou se ganham os portugueses ao ficarem dependentes dos abutres e do lucro para, no canto da Europa, se conseguirem mexer? Já nem vou mencionar nas idas a casa dos emigrantes ou luso-descendentes, os tais cinco milhões que andam espalhados pelo mundo e que só servem para enviar remessas, pagarem festas de Agosto na aldeia ou serem gozados na praia.
Dizem-nos repetidas vezes que a Ryanair transportou milhões de pessoas para o território nacional e por isso podemos dispensar a TAP. O que acontecerá então quando Porto e Lisboa saírem da moda e a TAP não existir? Ficamos como Bratislava ou Liubliana? Capitais onde as low cost levam couro e cabelo por um voo de duas horas?
A minha pergunta, para o Luís e para os liberais em geral que tentam fechar a TAP desde que Pedro Nuno Santos a resgatou, é a seguinte: porque não exigem apenas uma administração competente para a transportadora nacional? O mantra dos mercados não se aplica na substituição de gestores inúteis?
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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