Pelo sim, pelo não, vai rezando uma oração.
Provérbio tradicional transmontano
Quando estou a acabar os livros que demoraram muitos anos a escrever-se dentro de mim, acontece-me com alguma frequência deixar de controlá-los, porque começam eles a controlar-me a mim. Por exemplo, estou a arrumar a cozinha e sou subitamente atacada por uma frase que teria ficado muito melhor na abertura do terceiro capítulo da segunda parte. Outro exemplo, menos prosaico, é quando nem sequer consigo dormir: as pessoas dos papéis principais podem acordar no meu cérebro, podem entrar no meu quarto, podem invadir-me de imensas maneiras, mas o resultado é sempre o mesmo: estão a ter grandes conversas, zangam-se, riem-se, e eu, feita parva, por muito que não queira sou refém daquilo tudo. Desta vez, enquanto o deus do desejo tentava contar uma lenda à narradora, só espero que fosse mesmo tudo um sonho[1]; e que aquele sonho assinalasse o fim da escrita[2]. Senão só poderei concluir que enlouqueci mesmo[3]; e que, pior ainda, aquela escrita não terá fim[4].
“Sabes”, disse ele, “gostava especialmente que me deixasses contar-te a história do jovem príncipe a quem o Pai, no seu leito de morte, ofereceu um pássaro chamado Angha Kouch, que trazia inscrita nas penas, em arabescos sagrados, toda a sabedoria do mundo.”
“Sabedoria essa que devia ser, então, muitíssimo maior do que a nossa.”
“Miúda, tu és lixada. Até a rapidez do teu raciocínio me dá tesão.”
“Pois, mas também já se percebeu que a ti tudo te dá tesão, o que não é minimamente surpreendente considerando o que fazes na vida. A sabedoria do mundo só podia ser muito maior, uma vez que as pessoas tinham muito mais tempo, muito mais espaço, e é certo que também tinham muito mais servos e escravos, mas isso são contingências culturais. O que interessa é que as pessoas tinham imenso campo aberto para o jogo infinito de tentar vislumbrar o que virá a ser possível. Alguém tem que devorar alguma biblioteca para ser rápido nisto?”
“Não, não tem,” respondeu-me ele mansamente. “Mas olha que tu vês incrivelmente bem no escuro, mulher.”
“E é com esse género de conversas que tu costumas despertar o nosso desejo, grande kizombeiro?”
“Bom, as outras mulheres…”
“Eu não sou as outras mulheres. Conta-me lá a história do Príncipe e do Pássaro, vá. Adoro histórias.”
“Então, depois da morte do Pai, o jovem estudou as penas do Angha Kouch com tanto afinco, durante a vida inteira, na paz dos seus jardins, que chegou à perfeição dos homens realizados.”
“E foi muito feliz?”
“Ai que chata. Voltaste a fazer a única pergunta que interessava fazer no fim desta história. E, portanto, calculo que já pressintas a resposta.”
“Eu apenas duvido imenso da felicidade desse puto. Nunca ouvi falar de nenhuma lenda, nem de nenhuma fábula, nem de nenhuma história tradicional, onde a sabedoria levasse à felicidade.”
“Tem calma. Antes de mais nada, assim, de repente, dir-se-ia que tens razão. A lenda do Angha Kouch diz-nos claramente, por repetidas vezes, que o jovem chegou à mais perfeita sabedoria. Mas nunca menciona a sua felicidade ao atingir semelhante perfeição.”
“E portanto eu aposto que esse puto nunca chegou sequer a saber o que era a felicidade.”
“Ai é?”
“Ah pois é, meu, pois é. O meu trabalho já me fez caminhar por vezes ao lado de grandes sábios. E eles tinham todos o mesmo padrão em comum: quando começavam a falar do que sabiam às pessoas que se reuniam para os ouvirem, ficavam imensamente felizes. E essa felicidade vinha-lhes da partilha dos seus conhecimentos. Agora esse rapaz da tua história, se sabe tudo mas nunca partilha nada, epá, tu esquece. Acaba por transformar-se num velhote tão arrogante e tão cheio de manias que as criancinhas fugiam a correr assim que ouvissem a tosse dele ao fundo do corredor. Ai que lá vem o dragão. Coitadinhas.”
“Ai mulher, mas tu não vês que estás a estragar completamente o glamour do momento? Então eu digo não mais do que a primeira frase de uma fábula de um lugar muito distante que tu nunca visitaste e cuja língua desconheces, e a partir daí pões-te tu a contar-me o resto, como se sempre tivesses conhecido todo o imaginário de todo o universo? Achas normal?”
“Podes crer que acho. A vida ensinou-me que nenhum grande sábio é um sábio completo se não souber rir. Não te dei nenhuma explicação para o fenómeno, porque isso, as explicações, meu pináculo da perfeição… como de certeza que sabes muitíssimo melhor do que eu, há imenso tempo que já não existe explicação nenhuma para absolutamente nada.”
“Ah, minha menina, que uma coisa é quando a gente sonha, mas outra coisa é quando a gente prova. E provar isto assim, isto de nós os dois, isto é tudo tão bom…”
“Eu sabia.”
“Grande coisa. Lá saber também eu sabia.”
“E então tu, que és um deus pagão e portanto tens possibilidades que eu não tenho, tu sabes, e então não te lembras de nada melhor do que fazer-me esperar por ti durante dezenas de anos?”
“E então, há azar? Não cheguei a tempo?”
“Tu és imortal, meu filho. Assim também eu. Só que eu, sendo humana, por esta altura até já podia muito bem ter batido as botas.”
“Oh, vá lá, não sejas dramática. Eu tive de fazer-te esperar porque, antes de vir ter contigo, precisava de testar o teu próprio pressuposto.”
Despenteei-o à bruta.
“Precisavas de testar o quê?”
E ele despenteou-me mais à bruta ainda.
“Não eras tu a grande megera que estava sempre a dizer aos seus pobres filhinhos, meninos-meninos-saber-esperar-é-uma-grande-virtude”?
“Cabrão.”
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Pertenço aos 15% das pessoas que sonham a cores, e aos 27,2% que se lembram dos sonhos quando acordam.
[2] O diálogo poderia não ter sido exactamente este, até porque me lembro de que ambos os protagonistas usavam e abusavam dos palavrões mais escabrosos da língua portuguesa. Mas o sentido era este, isso de certeza.
[3] Note-se que esta última frase não é necessariamente adversativa da antepenúltima.
[4] Seja como for, o seu fim nunca será o fim da lenda. Já está decidido há bastante tempo que a mulher raramente deixa o deus pagão chegar ao fim dos seus raciocínios.