Recensão: Arrogância fatal

Socialismo: essa ideologia útil… mas só em sociedades tribais

por Luís Gomes // Março 10, 2023


Categoria: Cultura

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Título

Arrogância fatal: os erros do socialismo

Autor

Friedrich A. Hayek (tradução: João Carlos Barradas)

Editora (Edição)

Guerra & Paz (Novembro de 2022)

Cotação

20/20

Recensão

Friedrich Hayek (1899-1992) foi um dos maiores economistas do século XX, laureado com um prémio Nobel em 1974; fez parte da corrente de pensamento económico que se designou por Escola Austríaca, promotora do mercado livre e da liberdade individual.

A ele deve-se em parte o reconhecimento de que o liberalismo não nasceu no norte da Europa, mas sim na Península Ibérica, em particular na Universidade de Salamanca, Espanha, mas também nas universidades portuguesas de Coimbra e Évora.

Hayek foi o supervisor do doutoramento de Marjorie Grice-Hutchinson, autora do livro “A Escola de Salamanca”, que nos deu a conhecer os principais contributos para a ciência económica de vários escolásticos espanhóis, como Juan de Mariana, Saravia de la Calle, Domingo de Soto, Tomas de Mercado, Martín de Azpilcueta Navarro (Reitor da Universidade de Coimbra) e Luis de Molina (professor na Universidade de Évora durante muitos anos).

Foram estes autores que introduziram a Teoria da Utilidade Marginal, a Teoria Quantitativa da Moeda, a explicação para o fenómeno dos juros – para a Igreja e outras religiões monoteístas parecia imoral produzir dinheiro de dinheiro –, a legitimidade do regicídio no caso de desvalorização da moeda (inflação) pelo monarca – proposto por Juan de Mariana –, e, principalmente, a teoria dos Direitos Naturais (direito à vida, direito à propriedade privada…), fundamental à liberdade individual.

Durante a União Dinástica dos dois reinos da Península, a família Habsburgo governava não só Portugal e Espanha, mas também a Flandres e a Áustria, ou seja, era dona da Europa no século XVI.

Não foi um acaso o aparecimento de uma corrente de pensamento libertária no império Austro-húngaro durante o final do século XIX, onde nasceu a revolução marginalista, com os economistas Carl Menger, Eugen von Böhm-Bawerk e Friedrich von Wieser. Esta teoria deitou por terra a teoria do valor-trabalho defendida por Adam Smith, que mais tarde foi utilizada por Karl Marx para defender a “exploração do trabalhador”.

Friedrich Hayek é um discípulo de outro economista austríaco, Ludwig von Mises – um judeu que fugiu ao nazismo e foi viver para os EUA, passando por Lisboa -, e é erradamente associado à Escola de Chicago, cujo grande bastião foi Milton Friedman, criador da cobrança tributária através da retenção na fonte e um acérrimo defensor dos Bancos Centrais, a quem ele atribuía o papel de estabilizador da despesa em caso de recessão económica, através de estímulos monetários, algo totalmente contrário ao proposto pela Escola Austríaca.

Foi a Escola Austríaca a responsável por explicar os ciclos de expansão-recessão do capitalismo – apontados por muitos como uma falha do mercado -, atribuindo-os à expansão do crédito através da emissão de dinheiro – prática de reservas fraccionadas –, que origina distorções nas taxas de juros e gera sinais erróneos aos agentes económicos. Hayek aprofundou e detalhou a teoria dos ciclos económicos iniciada por Mises.

Neste Arrogância fatal: os erros do socialismo, Hayek diz-nos que os sistemas éticos não resultam da razão, mas são o resultado de um processo histórico. Para ele, a razão, suportada em certas suposições da natureza humana e em dados empíricos, é incapaz de conceber um sistema ético.

Ele até nos dá um exemplo: a razão de um dado indivíduo é incapaz de conceber uma língua, esta resulta da interacção humana em comunidade ao longo de gerações.

Assim, o nosso sistema ético foi passado de geração em geração e aprendido por imitação. O seu progresso e desenvolvimento foram alcançados por um mecanismo de evolução social: as culturas que adoptaram os “bons” sistemas éticos sobreviveram e floresceram, enquanto aquelas com “maus” sistemas éticos fracassaram ou tiveram de adoptar sistemas éticos que evitassem o seu desaparecimento. Esse processo de tentativa e erro produziu a ética ocidental, um sistema altamente bem-sucedido, atendendo à sua supremacia tecnológica, científica e económica ao longo de vários séculos.

Segundo Hayek, a ética ocidental surgiu a partir das civilizações mediterrânicas, onde pela primeira vez na história da humanidade apareceu o conceito de propriedade exclusiva - um termo utilizado por Hayek para referir-se à propriedade privada; ao contrário, por exemplo, das sociedades asiáticas, onde tal conceito era praticamente inexistente (notários, registo, contrato…).

Hayek explica-nos que há uma dialética ética e não materialista, como defendia Karl Marx, na sociedade ocidental. Ele diz-nos que as tribos primitivas, no alvorecer da história, para se defenderem e sobreviverem tinham de adoptar uma ética colectivista - solidariedade, altruísmo, etc.

Com o decorrer do tempo, técnicas agrícolas foram desenvolvidas, permitindo o surgimento das primeiras cidades. Estas transformações deram origem a dois desenvolvimentos que tornaram a ética dos “pequenos grupos” - ética colectivista - insustentável: o comércio e o crescimento populacional.

O comércio colocava os membros de comunidades fechadas em permanente contacto com desconhecidos que geralmente não partilhavam os mesmos objectivos, propósitos e crenças do grupo.

O crescimento populacional, estimulado pela prosperidade económica, e não o contrário, tornou o pequeno grupo num grande grupo, resultando em membros do mesmo grupo frequentemente estranhos uns aos outros e frequentemente perseguindo objectivos e propósitos distintos.  

A ética de “pequenos grupos” deixou de ser aplicável a comunidades diversificadas e cosmopolitas; grupos que não se adaptavam ficavam isolados e economicamente estagnados. Através do processo evolutivo social, a ética de “pequenos grupos” foi gradualmente substituída pelo que Hayek designa por “Ordem Espontânea”.

Esta Ordem Espontânea abandonou os propósitos colectivos a favor de regras abstratas e geralmente aplicáveis que facilitavam os diversos fins individuais. Essa ética servia como um mecanismo impessoal para a coordenação de acções e planos individuais, enquanto a ética dos “pequenos grupos” dependia de um líder tribal, que dirigia o grupo para um objetivo comum.

A “ordem espontânea” substituiu assim a ética dos “pequenos grupos” como sistema dominante; no entanto, a ética de “pequenos grupos” continuou a existir: famílias, amizades e pequenos negócios continuaram a segui-la.

O altruísmo, o amor, a solidariedade, a camaradagem e um propósito comum – tão necessários para a realização dos indivíduos – são apenas possíveis dentro de um pequeno grupo. Desta forma, Hayek conclui pela dialética ética das sociedades contemporâneas: (i) a ética da “Ordem Espontânea” diz aos indivíduos e aos grupos como agir dentro de uma ordem mais ampla, enquanto a ética do “pequeno grupo” instrui os indivíduos a comportarem-se dentro dos limites das várias associações voluntárias a que aderiram.

Hayek também nos diz que os indivíduos apresentam uma capacidade limitada de viver simultaneamente dentro de duas ordens de valores. A linha divisória entre as duas estruturas deixa os indivíduos confusos em relação às suas obrigações.

Por exemplo, alguém teria a obrigação de ajudar um amigo ou um membro da família em apuros financeiros? E um estranho a pedir na rua? Ou um homem de negócios conhecido, próximo da falência, que actua como concorrente no mercado? Hayek diz-nos que apesar da tensão entre estas duas estruturas de valores, o equilíbrio deve ser mantido.

A Ordem Espontânea permite que os indivíduos trabalhem para outros que desconhecem e que também comprem a pessoas que igualmente desconhecem – quem conhece a pessoa numa linha de montagem que construiu o nosso carro?

A ética dos “pequenos grupos” permite estreitar os laços e a camaradagem indispensáveis ao fortalecimento e bem-estar dos indivíduos.

Hayek explica-nos que as pessoas ligadas às ciências naturais – não são os únicos, os políticos e os que advogam o socialismo também –, que valorizam a razão e o positivismo, regra geral, são incapazes de compreender a Ordem Espontânea, pois esta frequentemente gera resultados contrários ao que a sua razão dita como “lógico” ou “racional” – a distribuição “justa” da riqueza, a “justiça social”, um estímulo de 10% resulta num crescimento de 20%.

Segundo Hayek, isto resulta em primeiro lugar da incompreensão do que é a economia: o estudo da acção humana na selecção dos meios para satisfazer determinados fins.

Por exemplo, se assisto a um programa de televisão, tenho de tomar opções acerca do meu tempo: vou continuar a vê-lo?; ou vou caminhar?; ou vou escrever uma carta? O nosso tempo, os recursos que existem na natureza e a nossa força laboral são recursos escassos; a todo o momento, temos de tomar decisões sobre como os utilizar para satisfazer os nossos fins: lazer, alimentação, alojamento, etc.

De acordo com os meios ao seu dispor, os seres humanos ordenam os fins – do mais importante para o menos importante – e tomam decisões com base nessa ordenação. Por exemplo, se um dado agricultor dispõe de cinco cavalos – que os considera iguais em aptidões e características – irá colocar o primeiro na necessidade mais importante (lavrar) e o último na quinta mais urgente (carregar sacos).

Se ele necessitasse de sacrificar um cavalo dos cinco que possui, iria dispensar a actividade de carregar sacos, a utilização marginal. Por essa razão, quando um bem não é escasso tem pouco valor na mente humana, atendendo que tenho de sacrificar uma necessidade de pouca importância.

Quando uma dada pessoa realiza uma troca no mercado, significa que o bem ou serviço que recebe em troca tem mais valor do que aquele que está a sacrificar. A troca ocorre em resultado de diferentes valorações na cabeça de comprador e vendedor, só há troca se a mesma é benéfica para ambos. O rácio de troca, por exemplo, 1 cavalo por duas vacas, de uma eventual transacção entre dois agricultores permite aquilo que se designa por formação de preços de mercado. Quanto maior o número de intervenientes e as quantidades intercambiadas maior a liquidez e a profundidade.

A utilidade de cada animal para um dado agricultor não é mensurável, não é quantificável, nem tão pouco é comparável a utilidade de um dado cavalo para os dois agricultores. Por essa razão, as ciências exactas não podem ser aplicadas à economia. Por outro lado, cada ser humano tem uma dada ordenação de valores, com estas a sofrerem constantes alterações a todo o momento, seja por circunstâncias (se está calor, tenho sede, logo mais propenso a pagar por uma garrafa de água), pela idade (na velhice, tenho outras prioridades) ou valores da comunidade (modas, tendências…).

Desta forma, transformar a ciência económica em modelos matemáticos, como acontece hoje com os modelos macroeconómicos, segundo Hayek, é um completo disparate. Na ex-URSS, os planeadores centrais tinham de se basear nos preços dos mercados ocidentais para formularem um plano de produção. Como podiam saber quantos carros amarelos produzir? Quantos parafusos produzir, e de que tamanho? Apenas os preços, expressos numa unidade de conta (a moeda), permitem a tomada de decisões de uma ordem complexa.

Os preços são sinais que permitem aos diferentes agentes tomarem decisões. Os preços, segundo Hayek, permitem a coordenação de sociedades altamente complexas e prósperas, em que várias pessoas se especializam em determinadas linhas de produção, com base nas oportunidades que os preços assinalam. Quanto maior a população, e não o contrário, maiores são as possibilidades de especialização e as respectivas oportunidades que resultam da Ordem Espontânea.

Essa capacidade de interpretar assimetrias de preços (na Europa, por exemplo, as especiarias eram altamente valorizadas no século XV) e de retirar proveito, como fazem os comerciantes, comprando barato e vendendo caro, sempre originou, segundo Hayek, o desdém dos intelectuais ao longo da história.

Um indivíduo que nada produz, consegue tornar-se rico explorando assimetrias de preços, graças a informação privilegiada e ao conhecimento do “terreno”, que apenas ele logra interpretar. Para não falar da actividade bancária, ainda mais enigmática e mais vilipendiada, dado que é incompreensível não só para os intelectuais como para a maioria da população.

Segundo os socialistas, a remuneração da Ordem Espontânea é sempre “injusta”, dado que penaliza os indivíduos que se esforçam, que realizam as tarefas árduas de produção; para eles, a intervenção é sempre necessária para criar algo que seja “racional” e “justo”, segundo o seu ponto de vista, por forma a corrigir as “injustiças” da Ordem Espontânea.

Outro erro dos “racionalistas”, segundo Hayek, é o carácter primitivo da natureza humana, em particular o animismo. Um dos exemplos mencionados por Hayek é o contrato social de Jean-Jacques Rousseau, como se a Sociedade tivesse alma, fosse capaz de assinar o tal acordo. Esse é outro dos erros de Karl Marx, ao atribuir uma alma ou consciência a uma dada “classe”: os burgueses, os operários.

Esse animismo é responsável pela importância que a palavra “Social” tem hoje na nossa sociedade: a “justiça social”, a “segurança social”. É como se uma maioria tivesse personalidade própria, quando na verdade apenas existem indivíduos distintos, com fins e valorizações completamente diferentes. Se um indivíduo pertence a um sindicato não significa que valorize exactamente os mesmos fins dos demais, na verdade considera apenas que essa associação ser-lhe-á benéfica para atingir os seus fins – melhor salário, por exemplo.

Desta forma, Hayek explica-nos que o socialismo apenas funciona em sociedades tribais ou de reduzida dimensão, em que um líder consegue coordenar os esforços de um pequeno grupo para um fim comum. Numa sociedade complexa e próspera, apenas a ética da “Ordem Espontânea” funciona, apesar de muitas vezes ser contrária aos instintos humanos (confiscar para criar “justiça” distributiva ou “alojamento para todos”) e daqueles que pregam o socialismo.

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