A ti, que estiveste internado nos serviços de saúde durante a tal crise de 2020 a 2021, abre a porta do silêncio e conta-lhes o que viveste.
Cidadão com teste na narina positivo era internado numa cama, num quarto de um ou vários, janelas fechadas e penico alto debaixo da cama.
Preso na habitação fechada, sem renovação de ar com o penico pertinho da mesa da comida, confundindo cheiros.
Vinham pessoas impossíveis de identificar, vinham técnicos completamente limitados por roupas de protecção, e ajudavam a higiene, despejavam os penicos e traziam comidas.
A medicação decorria nas mesmas condições. Não pode sair! Não pode abrir a janela! Deite-se!
O musgo acumulava-se nos tectos e o mau cheiro crescia.
A doença nuns progredia de modo inexorável para um fim trágico, e noutros havia um despertar.
A liberdade dependia do cotonete na narina.
A progressão da doença assustava os técnicos que viviam em pânico de ir para um daqueles insalubres lugares.
O susto era produto da informação externa aos hospitais, veiculada por alarmistas médicos, alucinados matemáticos que previam o apocalipse. Assustados iam para casa e dela voltavam.
Os meses passavam e os cenários eram iguais, cada vez mais simples, mais previsíveis, com mais gente que ficara infectada e regressava sã. A larga maioria das pessoas contraía a doença e melhorava.
Havia uma recomendação de fechar-se em casa uns dias e depois, apesar do que se diz nos livros, regressava imune, carregava medo igual, e protegia-se do mesmo modo.
Um tempo de fazer pela ignorância do medo, sem ousar acreditar numa vírgula que fosse do que se escrevera até hoje. Assim fecharam-se milhares de pessoas, incomunicáveis permaneceram durante anos alguns idosos, converteram-se lugares de escrutínio da vontade e da opção livre, em casernas militares e presídios obrigatórios. Os filhos arrasados de receio fugiam dos pais.
A mim perturba-me imenso aqueles encerramentos de jovens e idosos no sanatório dos Covões durante semanas, como se estivéssemos nas trevas da lepra, no pior tempo da SIDA, no maior obscurantismo da Idade Média.
Se tivessem morrido 7% das pessoas que contraíam a doença (faleceram menos de 0,9 e sobretudo os muito doentes, ou idosos em fim de vida e, como em tudo na vida, raras excepções), tínhamos voltado à mais negra das noites. Tinham-se matado vizinhos, tinham-se libertado as feras dentro de nós, pessoas viravam bestas – se é que alguns não viraram.
O que testemunhei nos hospitais durante a crise de 20/21 é uma das facetas mais tristes da menoridade humana e daquilo que o medo expresso nas redes de informação catapulta.
Diogo Cabrita é médico
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