Rolar o dedo nas redes sociais é um privilégio, e também um alimento, que nos mostra muito. Tantos “alimentos” no feed que quase se assemelham, a certa altura, a uma pia de lavagem, e eu, porca, a fuçar naquilo tudo.
(Preços que se pagam por deixar de consumir televisão e jornais.)
Hoje, como quase sempre, lá aparece um gatinho.
Mas este gatinho é testemunha das brigadas de salvamento de gatinhos. Aparece uma fotografia do bichano, coberto de lama e sujidades várias, ar doente, friorento e triste contra uma janela de carro e chuva lá fora.
Foi resgatado. E na fotografia em baixo já aparece, seco, fofo, radiante e com ar de quem ronrona numa cama almofadada contra uma janela de uma casa com jardim e sol lá fora.
Até aquece a alma.
Pergunto-me quantas vezes o ser humano, aquele que salvou aquele gatinho, fez o mesmo por outro ser humano, nas mesmas condições.
Trouxe-o da rua, lavou-o, tratou-o, deixou-o aquecido numa almofada a posar para a foto. A ilustração da humanidade a ser meiga com o seu semelhante, com a mesma intensidade generosa no acto de salvamento de animais indefesos, frágeis, vulneráveis e, regra geral, submissos ou garantidamente domináveis.
Certamente que o deixa dormir aos pés da cama ou até dentro mesmo. (O bichano.)
Será que é o medo em jogo? Afinal de contas, há mais risco em salvar um animal selvagem, de grande porte, e pior ainda se tiver uma ideia de livre arbítrio e não achar muita graça a recolher obrigatório ou à esterilização forçada.
Pior ainda se o dito animal selvagem, e de maior porte, se lembra de discordar de quem o salvou, se lhe ocorre ter um estilo de vida que comicha com o conforto físico ou até moral do bom samaritano.
(E lá no Mediterrâneo mais um barco cheio de pessoas, que não são gatinhos, a afogarem-se no atrevimento de ansiar por uma almofada e um sol no jardim de fora da casa. Não têm na verdade uma única bandeira que dê para exibir fervorosamente, têm várias, ou de facto já nenhuma, visto que nenhuma bandeira quer saber de nós nem tampouco nos oferecem uma para nos embrulhar, a não ser para quem morre por um lunático gatarrão que surge seco, fofo, radiante e com ar de quem ronrona numa cama almofadada [e às vezes nem isso] ou para quem paga bilhete com brinde para a claque do desporto rei.)
Mais um banho de redes sociais, e surgem outros gatinhos que alguns partilham afincadamente com as notícias que a propaganda do nosso eixo teima em esconder.
Uma invasão de privacidade, que nos garante o vislumbre do íntimo das decisões dos últimos três anos.
A ciência (e não a siênssiah) da verdade sobre as máscaras.
A censura desvairada de tudo e todos os que não sigam o catequismo.
Enfim. É escolher qual a lavagem.
Na falta de melhor, podemos sempre reler o 007 ou os clássicos infantis, lavados de ofensas a públicos sensíveis. O index de palavras proibidas já vai desde gordo (mas não magro) até a rapazes e raparigas (ah pois, para quem não saiba, neste momento, até o sexo biológico é tabu nos países das maravilhas, até porque todos sabem que a biologia é ciência non grata nesta década.)
Enquanto isso, procurem comédia, que esta vida são dois dias e, acho eu, o Carnaval foi três.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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