a deriva dos continentes

The house always wins

por Clara Pinto Correia // Março 17, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

Se não for agora, então quando será?

Provérbio judaico


Esta é uma história exemplar sobre a infâmia dos vários tipos de jogos que as pessoas compram em tudo quanto é sítio, em vários tipos de papelinhos coloridos, nos quais acabam por gastar umas quantias nada desprezíveis, sendo extremamente raro receberem seja o for em troca. Tudo isto sempre me pareceu extremamente duvidoso. Mas não há como ouvir falar um verdadeiro profissional.


Tenho vindo a animar um clube de leitura numa vilazinha aqui perto, e a primeira coisa que faço, sempre que lá chego, é ir a correr tomar café, muito embora já tenha tomado dois em casa, antes de sair para ir passear o Sebastião e depois de voltar de ir passear o Sebastião. Às vezes ainda tenho que fazer qualquer coisa muito urgente, como por exemplo mandar a minha crónica para o PÁGINA UM, e então lá vai mais um café. Mas não interessa, dê lá por onde der, assim que chego à biblioteca da nossa reunião, vou sempre a tempo de me sentar na esplanadinha do cafezinho local e de tomar o último café antes de começar a trabalhar, enquanto o Sebastião conversa com toda a gente que passa, e que já lhe conhece o nome e retribui o nome, sobretudo os meninos, que querem sempre umas festinhas.

O proprietário desse café minúsculo é um miúdo muito simpático com quem eu troco sempre cinco minutos de conversa se não vier ninguém pedir nada ao balcão entretanto. Normalmente são conversas divertidas, mas no outro dia vi-o tão triste, com um ar tão abatido, e aquilo era tudo – como tem sido para quase todos os portugueses normais – por causa da falta de dinheiro, que eu lhe disse,

“Ó Rui, que não seja por isso. Eu estou tesa, como de costume, mas posso sempre oferecer-lhe uma raspadinha. Quer?”

Tudo a rir, e ele,

“Ah, eu não digo que não a nada, sabe-se lá.”

Memórias de outras Derivas como esta, já lá vão uns bons vinte anos
É tão irritante, nunca mais deixarmos de ter razões para nos sentirmos indignados no mais simples bate-papo ao domingo, do outro lado da rua.

Sendo domingo e havendo uma tabacaria aberta na esquina que fica do outro lado da rua, deixei o Sebastião entregue aos seus amigos da esplanada, entretanto já todos a apostarem quanto é que havia de sair ao Rui e o que é que se fazia com essa massa, e fui num pulo “à do Zé”, como as pessoas dizem aqui.

“Bom dia Senhor Zé, é para comprar uma raspadinha, eu nem sei que preços há, mas…”

“Ai, Clarinha!”, respondeu-me logo o Senhor Zé, muito preocupado, “por favor não se meta nisto.”

“Não é para mim, é para o Rui, que está muito em baixo, então eu prometi que vinha cá comprar-lhe uma raspadinha.”

“Pois, está bem, então é um euro, mas oiça, nem ele, nem a doutora, nem ninguém: que ninguém tenha ilusões, isso das raspadinhas é um roubo. Um roubo de luva branca autorizado pelo fisco, e portanto governo, entendeu. Nunca, nunca, nunca, sai nada a ninguém. Eu vejo essas velhotas virem cá logo às oito e meia, assim que eu abro, comprar uma data delas, e até me dói o coração.”

“Então porque é que não lhes diz que não as comprem?”

“Eu? Se fosse eu a dizer às pessoas que não jogassem, fosse no que fosse? Estava desgraçado! Não percebe? Ao fim desse dia já toda a gente, daqui até Estremoz, sabia do que eu tinha dito… e, no dia seguinte, estava cá uma inspecção qualquer a fechar-me a loja por causa de um defeito qualquer que haviam de inventar logo ali.”

“Não pode deixar de vender jogo, então?”

“Uma casa como a minha, que é uma Tabacaria? Então não vê que isso era a fome e a vontade de comer? Valha-me Deus! Olhe, Clarinha, é como sermos protegidos pelas máfias, e essas coisas assim: quanto menos se falar no assunto, melhor.”

Lá fui entregar a raspadinha ao Rui.

Quando saí do Grupo de Leitura, ele mostrou-ma – toda a zeros, exactamente como o bolso do gajo que acaba de ganhar, e perder, e ganhar, e por fim perder tudo, durante as três horas intoxicantes passadas nas slot machines de um casino qualquer, igual a todos os outros.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

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