VISTO DE FORA

Às tantas ainda chega uma hora em que se começa a partir coisas…

person holding camera lens

por Tiago Franco // Março 20, 2023


Categoria: Opinião

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Não sei se tiveram a oportunidade de ver o debate entre Cotrim de Figueiredo e Duarte Alves, a propósito do (alegado) aproveitamento das grandes cadeias de distribuição para inflacionarem ainda mais os produtos, em nome do lucro fácil.

Se não viram, puxem a box para trás e vão ver (SICN), porque é uma lição de como ser eficaz na mensagem política.

Cotrim de Figueiredo fez o que se esperava dele e defendeu o lucro a todo o custo. Ou melhor, tentou explicar-nos a naturalidade das receitas extraordinárias sem que isso significasse um aumento das margens por parte das distribuidoras.

10 and 20 banknotes on concrete surface

Não foi o primeiro, e certamente não será o último, a tentar convencer-nos que o aumento dos produtos básicos apenas reflecte a inflação e os custos de produção. Pedro Marques Lopes, entre outros da direita mais ou menos liberal, tentam explicar com ideologia aquilo que a Matemática não permite.

Duarte Alves, que é inteligente e consegue ler um relatório e contas, não tem metade do paleio e da lábia compressora com que Cotrim defende as suas ideias – ou ideais, vá. A cada frase debitada com o aumento do custo de produção do alimento X, Cotrim tentava mostrar um aumento semelhante nas prateleiras do supermercado. Finalizava cada frase com um “não estou aqui para defender as grandes superfícies, mas…”.

Mas não fez outra coisa que não fosse culpar a cadeia de produção pelos aumentos e isentar os grandes grupos de distribuição.

Pelo meio ainda fez uma piada, sugerindo a Duarte Alves que ligasse ao seu amigo Putin e lhe pedisse para desocupar a Ucrânia, para que a inflação voltasse ao que era. Duarte Alves, que é bom rapaz, mas a quem falta o tão famoso killer instinct, podia ter lembrado ao Cotrim que amigo, mas amigo a valer, era ele quando andava a distribuir e publicitar Vistos Gold pelos endinheirados russos, aí há uns bons 10 anos, quando era presidente do Turismo de Portugal.

Cotrim é aquilo tipo de escroque que usa a semântica, e já agora, uma boa preparação de dossiers, para repetir mentiras como se fossem verdades.

goods on shelf

A questão essencial desta narrativa dos liberais e dos afoitos defensores da Jerónimo Martins é a seguinte: se o preço na prateleira reflecte apenas o aumento dos custos de produção – sugerindo, pois, que os supermercados também absorvem parte do impacto –, como é que os lucros aumentam relativamente ao ano anterior?

Como é que os produtores se queixam de margens mínimas e não conseguirem manter a produção?

E como é que os trabalhadores em toda a cadeia de produção não viram aumentos reais?

Não há mais ninguém que veja que a conta não bate certo?

Os únicos que, comprovadamente, aumentam os ganhos são os supermercados, mas os avençados vão-nos repetindo que é pelo meio da cadeia que o dinheiro se perde. Então… se se perde, como é que se multiplica no fim?

Parece um rio misterioso que passa a riacho ali no meio, praticamente seca e, no fim, se transforma num oceano. Considero-me um optimista, e até acredito nas benesses da Matemática, mas esta história parece mais um auto-de-fé.

aerial photography houses

Rodeados de casos destes, e de ataques diários, os portugueses deixam de consumir ou sequer de conseguir pagar as despesas da casa. Salários que chegam ao fim do mês vão sendo notícia. O Governo português toma uma medida acertada, finalmente, de atribuir uma ajuda imediata para que os mais necessitados consigam pagar a renda.

Pode ser um penso rápido e não fechar a ferida – o problema é estrutural, todos sabemos disso, mas há milhares de famílias que deixaram de conseguir pagar as suas habitações e comer decentemente.

E eis que aparece novamente o Banco Central Europeu (BCE), sempre pela inenarrável Lagarde, para umas reguadas nos Governos da Zona Euro, pedindo-lhes que acabem com as prestações sociais.

A teoria é que ao injectarem dinheiro nas famílias, a sua capacidade de consumo aumenta e, dessa fora, as políticas do BCE são menos eficazes. Ou seja, pagar a renda de casa já é consumir. A esmola que vai ser dada a famílias em dificuldades para que não percam o telhado, é visto pelo BCE como capacidade de consumo. De que forma? Deixam de pagar a casa e vão comprar vinho verde?

lighted high rise building near body of water at nighttime

Não chega empobrecer. Não chega atingir a loucura com o desespero de não saber o dia de amanhã. Não chega pagar uma guerra escolhida por outros. Temos de ficar na rua, a céu aberto, completamente de gatas no que sobra de dignidade humana.

E é ainda mais engraçado que pessoas como Cotrim de Figueiredo, ou todos aqueles que defendem os donos do capital, nos digam há décadas que o salário mínimo não pode ser aumentado por decreto. Já o lucro das multinacionais, o custo das nossas casas, a grandeza do nosso empobrecimento, a diminuição dos nossos salários, não só podem como são, ciclicamente, decididos por decreto.

Puta que os pariu! A essa minoria que controla o acesso ao capital, e que nos faz matar por migalhas. Pobre classe trabalhadora que demora a perceber que é ela a maioria, é ela a detentora do conhecimento, e é ela a dona da verdadeira força.   

 

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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