Ajustes directos ascendem a 1,3 milhões de euros desde 2022

O negócio das esculturas: traz um amigo também…

a close up of a statue of a child

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A homenagem a António Guterres em Vizela, sob a forma de escultura, é apenas mais um dos casos em que a arte pública está conotada ao mundo dos amiguismos ou do marketing pessoal dos artistas plásticos. O PÁGINA UM foi dar uma “vista de olhos” nas esculturas encomendadas desde 2022 por autarquias, universidades e outras entidades públicas. E se a diversidade de preços é grande, quase todas têm uma característica comum: não houve concorrência; paga-se para ver em definitivo, porque os contratos são por ajuste directo. De entre os mais beneficiados está a nova coqueluche da arte urbana: Bordalo II já facturou, nos últimos cinco anos, mais de 650 mil euros em ajustes directos.


Há de tudo um pouco no mundo da arte pública. Desde obras que orçam nem seis mil euros até valores que se aproximam dos 200 mil euros, mas todos com um ponto em comum: ajustes directos, o que, em termos práticos, significa que o adjudicante escolheu literalmente a dedo quem, com as mãos, lhe haveria de fazer esculturas.

Num momento em que ecoam críticas à beleza e ao custo da escultura de António Guterres em Vizela – encomendada pela autarquia por 89.980 euros para homenagear o primeiro-ministro que elevou aquela vila a sede de concelho, em 1998 –, este caso revela apenas os meandros do pequeno mundo da arte escultórica em Portugal, onde mais do que o aprumo no cinzel ou as noções estéticas do escultor jogam mais as suas ligações ou o marketing pessoal.

Estátua de António Guterres custou quase 90 mil euros.

Com efeito, de acordo com uma análise do PÁGINA UM, de entre os 49 contratos relacionados com esculturas registados no Portal Base desde Janeiro de 2022, apenas um foi por concurso público, aberto pelo município do Porto e ganho por Gelimar da Silva Trillo, que teve de “derrotar” cinco concorrentes. O valor, porém, é dos mais baixos que se detectam. No total, os 48 contratos por ajuste directo desde 2022 totalizam mais de 1,3 milhões de euros.

No topo da lista de contratos por ajuste directo está uma escultura em homenagem ao cavaleiro Joaquim Bastinhas, falecido em 2018, que a autarquia de Elvas encomendou ao escultor espanhol José Antonio Navarro Arteaga, conhecido em Portugal por ser o autor do busto de 60 quilogramas de bronze de Cristiano Ronaldo que se encontra no museu do Real Madrid.

Para a escultura do toureiro português, a Câmara de Elvas, presidido pelo “dinossauro” Rondão Almeida, nem pestanejou em pagar 177 mil euros em Julho do ano passado, sendo, por agora, conhecida uma réplica em pequeno tamanho.

Escultor espanhol que fez busto de Cristiano Ronaldo para o museu do Real Madrid recebeu 177 mil euros da autarquia de Elvas para homenagear o cavaleiro Joaquim Bastinhas.

O segundo maior contrato por ajuste directo desde 2022 foi estabelecido pela Fundação Marques da Silva, ligada à Universidade do Porto. Por duas peças escultóricas, a encomenda foi entregue directamente ao arquitecto Álvaro Siza Vieira por 175 mil euros, em Abril do ano passado. A ausência de concurso público ter-se-á devido ao facto de um dos mais famosos arquitectos portugueses ser já o autor do edifício do novo centro de documentação desta instituição.

Já a Câmara Municipal de Trofa fez o terceiro contrato mais elevado, decidindo, também por ajuste directo, comprar uma escultura e dois conjuntos de desenhos do artista plástico Alberto Carneiro, já falecido, em 2017.

O contrato, neste caso, beneficiou uma galeria de arte lisboeta (Galeria 3 + 1), que detinha estas obras de arte, tendo a aquisição uma justificação até bastante plausível: Alberto Carneiro, cuja obra premiada está exposta em vários importantes museus, nascera em 1937 naquele concelho, mais precisamente em São Mamede do Coronado.

Uma parte substancial das esculturas são de preço abaixo dos 10 mil euros (20 contratos), havendo apenas seis acima dos 50 mil.

Neste segundo grupo conta-se a a escultura promovida por Miguel Guimarães, ex-bastonário da Ordem dos Médicos, que gastou 57 mil euros para que Rogério Abreu fizesse duas cabeças de metal oco mascaradas a glorificar os “heróis da pandemia”. Por ajuste directo, claro.

Quem, de entre os vivos, também não se pode queixar da concorrência é o escultor Bordalo II, transformado nos últimos anos na nova coqueluche das artes plásticas. Através da sua empresa Mundofrenético, Artur Bordalo arrecadou dois contratos por ajuste directo nas últimas cinco semanas: no dia 15 deste mês a Lipor – a empresa de gestão de lixos do Grande Porto – pagou-lhe 18.860 euros por uma escultura, e o Instituto Superior Técnico encomendou-lhe também uma escultura por 57.500 euros, em 20 de Fevereiro.

Estas duas esculturas vão juntar-se a mais 23 contratos por ajuste directo que Bordalo II já conseguiu de entidades públicas, tendo facturado, em apenas cinco anos, um total de 652.329 euros. Em todo o caso, Bordalo II nunca facturou mais do que 72 mil euros por uma peça – valor que fica assim aquém da escultura de António Guterres em Vizela.

Sendo as autarquias um dos principais clientes destes artistas, não surpreende assim que se estabeleçam laços que vão além da arte. Um desses exemplos ocorre no município de Loulé, onde a Origami, pertencente ao artista plástico Filipe Feijão, conseguiu três ajustes directos para a execução de esculturas no valor total de 48 mil euros.

A Origami foi responsável pelos corsos dos Carnavais daquele concelho algarvio entre 1999 e 2014. Esta empresa – que tem sede nas Caldas da Rainha – tem, aliás, no município de Loulé um extraordinário cliente, sempre por ajustes directos: desde 2017 soma 11 contratos por ajuste directo no valor total de 201.750 euros.

A influência dos artistas na arte de obtenção de contratos por ajuste directo tem, de facto, em muitas situações, um padrão regional. Será, por exemplo, o caso de Francisco Lucena – que, desde 2020, conseguiu três contratos com autarquias.

Na verdade, Lucena é um especialista em conseguir contratos para o mais variado tipo de esculturas públicas contratadas por ajuste directo por autarcas. No seu portefólio contam-se 26 contratos para esculturas urbanas, pagas por autarquias, quase todas do interior norte e centro, das quais apenas em dois casos teve consulta prévia.

Aos 36 anos, Bordalo II acumula cada vez mais contratos por ajuste directo: em cinco anos foram já mais de 650 mil euros facturados.

Este escultor tem alguns clientes habituais, o que é bem representativo da cultura destes negócios: dos 18 municípios a quem já entregou arte pública, há quatro repetentes: Vila Pouca de Aguiar (quatro contratos), Trancoso e Sernancelhe (três, cada) Vila Pouca de Aguiar (dois). Francisco Lucena amealhou, desde 2010, um total de 700.819 euros apenas de câmaras municipais.

Apesar destas ligações promíscuas, que impedem a livre concorrência e estímulo criativo para novos artistas, o silêncio é a alma do negócio. De uma forma aberta, não há, na verdade, quem critique abertamente a forma como os contratos por ajuste directo se executam ao longo do país para obras desta natureza.

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