Título
Vozdevelha
Autora
ELISA VICTORIA (tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra)
Editora (Edição)
Casa das Letras (Janeiro de 2023)
Cotação
17/20
Recensão
Elisa Victoria nasceu em Sevilha, em 1985. Orgulha-se da sua colecção de bonecas, bem como do facto de ter usado gorro vermelho para vender pizzas e hambúrgueres. Estudou Filosofia e Ensino de Educação Infantil.
É professora de escrita criativa e tem contribuído para diversos sites, fanzines e antologias. Antes deste Vozdevelha ser o Livro da Semana no El País, em 2019, tinha publicado dois livros: Porn & Pains, em 2013, e La sombra de los pinos, em 2018, ambos com Esto no es Berlín. Aguardamos com alguma expectativa a tradução do seu mais recente livro, El Evangelio.
Esta história é sobre tudo ou nada do que aconteceu nos longos meses de um Verão do fim da infância de uma menina de nove anos, Marina. Cheira ao Verão seco e escaldante de Sevilha, onde o sol abrasador queima as ruas desertas na hora da siesta. Cheira a churros, asas de frango frito, algodão doce e também a cocó, xixi, e outros odores domésticos que integram a paisagem olfativa de um subúrbio da Sevilha pós-Expo’92.
A linguagem burlesca da narradora, a menina Marina, para descrever com densidade os usos e costumes, neste caso, de um bairro dos subúrbios do início da década de 1990, deve-se à influência literária em que o livro se enquadra, o costumbrismo. Será, por isso, muito fácil que os nascidos em meados da década anterior se sintam profundamente identificados com os programas de televisão, os desenhos animados e os brinquedos da época, como a Barbie, a Chabel ou o Nenuco.
O ritmo oscila entre os roncos sonoros da avó, também Marina, a alegria de Diana Ross e o flamenco de Rocío Jurado. Há muitas mulheres; o tema do género está bem presente, sobretudo pela ausência dos ascendentes masculinos da menina – o pai aparece apenas uma vez. Domingo, o namorado da mãe, também Marina, é a sua única influência masculina, mais pelo que deixa à disposição para ler e arregalar os olhos, como as revistas de pornografia e o livro que lê numa piscina cheia de crianças do condomínio, “A máquina de foder”.
Neste Verão, Marina parece obcecada com o sexo e cocó e as suas reflexões mais ou menos profundas vagueiam entre a eventual morte da mãe – doente oncológica – e as possibilidades de sentir um orgasmo, seja com outras meninas da sua idade, seja pelos filmes de terror, seja ainda pelo misterioso filme pornográfico gravado numa cassete VHS com uma etiqueta, na qual se lê “Jogo do Betis”.
Nesta história pouco infantil, o futebol e a política lutam pelo mesmo espaço da religião. No ano em que o “charmoso” Felipe González ganha as eleições, Marina aprende a importância de ser baptizada – a primeira comunhão será o passo seguinte, mas só se for obrigatório para se integrar no grupo de meninas do bairro para onde vai viver no final desse Verão.
É disto mesmo que o livro também trata: sobre como o processo de socialização, durante a infância, contribui para que as crianças, por intermédio dos diversos agentes de socialização (desde a família, os pares, os media, até à escola e religião, neste caso, católica), aprendam os seus papéis recorrendo a guiões, nem sempre fáceis de compreender, tão-pouco passíveis de serem alcançados pelos mais velhos que pensam que controlam… o incontrolável.
Tudo concorre para criar confusão, desordem e sobretudo, para desenvolver a personalidade forte de uma criança precoce, inteligente, curiosa e, naturalmente, cheia de dúvidas. O monólogo vívido, detalhado sobre questões existenciais e corriqueiras, agarra o leitor mais nostálgico, mas sem melodramas.
É um romance divertido e jovial, enquanto toca no que parecem ser os temas mais relevantes de uma criança que questiona tudo. A sua avó, a figura mais presente e influente durante o longo e quente Verão de céu esbranquiçado, responde a tudo de igual para igual, contando as histórias dos seus casamentos – é duplamente viúva.
Um Verão preenchido de brincadeiras, quedas, dente partido, revistas de banda desenhada pornográficas, em que o rádio e a televisão, com meia dúzia de canais abertos, são os únicos meios para ludibriar os longos minutos dos dias de Verão.