ARQUITECTURA DOS SENTIDOS

Barcos feitos de mar

brown and blue wallpaper

por Mariana Santos Martins // Março 29, 2023


Categoria: Opinião

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Uma menina em cadeira de madeira em escola bafienta, desconfortável, pernas a baloiçar, pergunta-se sobre que mapa é aquele ao fundo, na parede ao lado do quadro, se aquilo é a vista dos fantasmas de quem morreu. O atlas. Nós ao centro, os mares que se unem mas têm nomes diferentes, a cauda da Ásia que por alguma razão inexplicável tem direito a ser outro continente (perguntou, não disseram porquê), a enorme África calcada aos pés de tão ridículo e pequeno continente de pequenos retalhos e a sombra inclinada da ameaçadora América do norte, com garras apontadas em tenaz.

Pobre Antártida ignorada, e como diferente seria o mapa se tivessem decidido pô-la ao centro (perguntou, não disseram porquê). Devia ser por medo do frio.

blue and yellow abstract painting

A menina nota que há uma decoração obrigatória naquela sala, parecida com as outras salas do resto da escola. O mapa, um ábaco, um crucifixo, a lousa com a data e o nome da escola impecavelmente caligrafados a branco, o apagador sempre sujo ou a tela com todas as notas e moedas de escudo. Tudo é imensamente velho. Nomes cravados diligentemente nos tampos de madeira, os sulcos mais parecem uma nova rugosa casca de árvore e não pode escrever numa folha sem ter o livro debaixo. Outras pessoas foram meninos e meninas ali e hoje só existem aqueles nomes. Que raiva a mesa destruída mas, ao mesmo tempo, pobres meninos de quem só sobram aquelas rugas, melhor assim, deixa estar. (E já agora, vou preencher a caneta, vou ressuscitá-los.)

Quando as pernas já chegam ao chão o mapa ganha tamanho, a corrida acelera e corta o fôlego.

Como assim eles venceram a guerra e libertaram-nos? E não quiseram nada em troca? (Perguntou, não disseram porquê.)

A bomba cai, depois cai outra (e de Dresden não falamos). A bomba. É vê-los ainda a tiritar de medo.

child looking at map

Para a menina não dá medo, a bomba não existe e histórias em papéis e mapas há muitas e ela lê todos os dias debaixo do cobertor durante a noite com uma lanterna de bolso, como assim não quiseram nada em troca? Simplesmente foram embora pelos nossos lindos olhos e disseram “estais salvos europeus, sejam felizes e continuem a tocar piano e a erigir catedrais, nós vimos cá nas férias, gabar-vos a sopa”.

Curiosos os povos ocupados que não sabem que o são. (Tenham medo do novo bigode, seja ele do tamanho do dedo do anjo ou farfalhudo, o perigo está no bigode, homem que é de confiança apresenta a cara lavada!)

Santa América, nosso reich salvador, nossa mestra. Falaremos tua língua, consumiremos avidamente tua cultura, tua subcultura, tua usura. Estamos habituados a mapas cor de rosa, diz-nos o que fazer, nós fazemos, vocês decidem. (A bomba.)

Que sente o pai a quem a filha pergunta se matou pessoas quando esteve em África?

– Mataste pessoas na guerra, pai?

closeup photography of bong mask

A guerra não existe. A guerra não existiu. Nós fomos mandados para lá, nós não queríamos ir e tiritavamos de medo. O mapa ganhou tamanho (e a corrida acelera e corta o fôlego) e nós queremos é sobreviver e uns correm prá frente, outros correm pra trás, e isto é assim e no fim se tivermos sorte vimos embora e talvez não nos falte nenhum bocado (do corpo) enquanto apanhamos bocados (da alma) e engavetamos memórias algures, uns mais à frente, outros mais atrás, que isto dos móveis onde guardamos as coisas é tudo uma questão de decidir se usamos portas de vitrine (e estarão os vidros limpos?) ou madeira velha com nomes marcados em sulcos rugosos e ainda a menina se lembra de ir preencher a caneta, a ver se ressuscita crianças que por ali passaram.

Que sentiria um pai se tivesse vencido a guerra e a filha lhe perguntasse se matou pessoas na guerra?

E o que é vencer a guerra, rapariga? Quem tem de ir são os homens, vocês ficam aqui a tomar conta.

Tomar conta do quê? Aqui onde? E se a guerra chega cá?

E os homens a tiritar de medo mas as histórias são de papel e o mapa ficou decidido ao centro, a Europa, essa velha senhora, tão pura, tão odiosa.

brown wooden piano

Os mundos vão e vêm e as guerras aparecem e desaparecem sem que nada disto esteja afinal nas nossas mãos. Se é um eixo, se é um muro, se são aliados que desatam a morder as gabardines uns dos outros assim que saem de Ialta. Enquanto as pernas balouçando na cadeira e a azáfama de folhas de livros a tentarem enfiar-se na nossa cabeça (e na nossa alma), que desconfiança dos livros que se querem enfiar no meu corpo (e na minha alma), se me mandares ler eu já nem vou querer pegar nele.

E os meninos a tiritar de medo (e vão ser homens) mas as histórias mudam de papel e quando voltam da guerra para navegar o mapa descobrem que os barcos são feitos de mar.

Mariana Santos Martins é arquitecta


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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