Foi anunciada como a pandemia do século e colocou a sociedade em estado de pânico e mais do que à beira de um ataque de nervos, colapsando Economia e relações sociais. Que houve um excesso de mortalidade nos últimos três anos, é uma evidência, sobretudo nos mais idosos (com mais de 85 anos). O relatório do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), anteontem divulgado, confirma este facto, e até alerta para um estranho acréscimo da mortalidade em 2022 nos jovens dos 15 aos 24 anos. Mas esta análise do INSA acaba por ser extremamente redutora e nem sequer escalpeliza a evolução da taxa de mortalidade padronizada e dos diversos grupos etários, que apresentam em quadros e em gráficos sem quaisquer comentários. Não fizeram eles, faz o PÁGINA UM. E assim se fica a saber que, afinal, a pandemia da covid-19 esteve muito longe de um impacte superior à da gripe espanhola, como certos especialistas quiseram fazer crer. Na verdade, basta recuarmos a 2013 para encontrar anos com taxas de mortalidade padronizada e por grupos etários para constatar que, não há muitos anos, e sem covid-19, as doenças “banais” representavam um maior risco de morte, mesmo nos mais idosos.
Chegou a ser classificada por muitos especialistas como uma pandemia equiparada à gripe espanhola, mas afinal os dados constantes no relatório do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) sobre o excesso de óbitos em 2022, revelado anteontem, mostram que afinal as taxas de mortalidade durante o triénio da pandemia (2020-2022) estiveram até a um nível mais baixo do que aquelas que, por norma, se registaram em 2013 e nos anos anteriores.
Embora estranhamente o relatório do INSA não tenha desejado interpretar a evolução das taxas de mortalidade padronizada e por grupos etários, uma tabela (e gráficos) com a evolução destes indicadores entre 1991 e 2022 para cada um dos intervalos de idades – a começar dos 0 aos 4 anos e a terminar nos maiores de 85 anos –, uma análise do PÁGINA UM permite aferir facilmente que a probabilidade de morte em 2013 foi superior (8,5 por mil habitantes ) à de qualquer dos três anos da pandemia: 2020 (8,4 por mil habitantes), 2021 (8,2 por mil habitantes) e 2022 (8,1 por mil habitantes). Se recuarmos para as datas anteriores a 2013, e até 1991, o cenário é idêntico: genericamente, a taxa de mortalidade padronizada situou-se acima (e, por vezes, bem acima) da registada no triénio da pandemia.
Na verdade, as taxas de mortalidade padronizada e por grupo etário dos anos da pandemia pareceriam quase idílicas na primeira década do presente século ou nos anos 90 do século passado. Por exemplo, a taxa de mortalidade padronizada até 2005 foi superior a 10%, atingindo os 14% em 1991. A taxa de mortalidade padronizada durante os três anos de pandemia situaram-se, repita-se, entre os 8,1 e os 8,4 por mil habitantes.
Mesmo no casos dos mais idosos (maiores de 85 anos), os mais vulneráveis à covid-19, apesar de se ter registado um forte agravamento da respectiva taxa de mortalidade no triénio de 2020-2022 face ao triénio anterior – média aritmética de 156,5 por mil face a 149,5 por mil nos anos de 2017-2019 –, se se observar os valores de anos anteriores constata-se também que a pandemia não foi uma hecatombe. Ou, pelo menos, confirma-se que os mais idosos de agora resistiram muito mais às doenças (incluindo a covid-19) do que num passado não muito longínquo.
Em termos concretos, pelos dados calculados pelo INSA, no grupo dos maiores de 85 anos (já acima, portanto, da esperança média de vida), em 2020 – primeiro ano da pandemia – morreram por todas as causas quase 16 em cada 100 idosos desta faixa etária (159,4 por mil), descendo depois para 15,3% em 2021, e voltando estranhamente a subir em 2022, para os 15,72% (ou 157,2 por mil). Ora, o valor elevado no ano passado chega a ser superior ao registado em 2012 (158,2 por mil) e à generalidade dos anos anteriores.
Aliás, se recuarmos ao ano da gripe pandémica A (H1N1), em 2009, a probabilidade de morte nesse ano, dos mais idosos, foi superior: a taxa de mortalidade no grupo dos maiores de 85 anos foi de 16% (160 por mil). E nos anos 90, esse indicador ultrapassava geralmente os 20%. Por exemplo, se por cada 1.000 idosos com mais 85 anos, morreram 214 ao longo de 1991, no período mais agreste da pandemia para este grupo (2020) morreram “apenas” 159 – ou seja, menos 55 mortes em cada 1.000 pessoas desta faixa etária.
Esta evolução apenas demonstra que a pandemia da covid-19 “apanhou” a sociedade numa altura em que a tecnologia e os cuidados de saúde estavam num processo de contínua melhoria com evidentes reflexos na diminuição da taxa de mortalidade por grupo etário, e que, mesmo havendo uma inversão (subida), esta não deveria ter justificado o pânico generalizado. Afinal, a covid-19 e todas as outras doenças tiveram uma letalidade em 2020, 2021 e 2022 menor do que aquela que todas as doenças (sem covid-19, que ainda não existia) registaram há uma ou duas décadas.
Em todo o caso, não parece existirem dúvidas de que a pandemia – integrando o agravamento da letalidade de outras doenças – inverteu a tendência de decréscimo ou estabilização das taxas de mortalidade sobretudo nos grupos etários acima dos 60 anos. Se comparado com o triénio anterior, também nas faixas etárias dos 80 aos 84 anos houve um agravamento no triénio da pandemia (2020-2022), passando de uma média aritmética de 56,3 por mil (ou 5,63%) para 58,5. O agravamento foi mais ténue nos grupos antecedentes. Por exemplo, dos 60 aos 64 anos, comparando os dois triénios, a subida foi apenas de 0,04 pontos percentuais (7,9 para 8,3 por mil).
No entanto, os quadros do INSA mostram um aspecto que não é suficientemente aflorado no conteúdo do relatório: embora a taxa de mortalidade padronizada tenha descido entre 2021 e 2022 – acompanhada a transição para a fase endémica da covid-19 e perante a dominância da menos letal variante Ómicron –, verificou-se um significativo agravamento da taxa de mortalidade dos maiores de 85 anos entre 2021 e 2022, subindo de 15,3% para 15,72%.
Este fenómeno somente se repetiu na faixa etária dos 15 aos 24 anos – e com grande preocupação por serem idades onde a mortalidade era naturalmente bastante baixa.
Estas duas situações – tanto para os jovens como para os mais idosos – tem vindo a ser acompanhado pelo PÁGINA UM desde o ano passado. No caso dos idosos, o INSA aponta a culpa para a covid-19, frios e ondas de calor, mesmo em Maio, quando as temperaturas acima da média acabam por ser inferiores às temperaturas normais dos meses de Verão, o período naturalmente de menor mortalidade em Portugal. Em relação aos mais jovens, embora destaquem a anormalidade do aumento da taxa de mortalidade, o INSA não quis ir mais longe.
Os investigadores do INSA dizem apenas que “os excessos de mortalidade nos grupos mais jovens são raros estando, maioritariamente, associados a causas externas de mortalidade”, mas depois simplesmente acrescentam que “a ausência de informação disponível quanto às causas de morte não nos permite confirmar esta hipótese que colocamos como mais provável, dado o conhecimento anterior e o padrão do excesso observado (aumento acentuado em relação ao habitual e de curta duração)”.
Saliente-se que existe informação: o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) contém, na base de dados de raiz, todas as causas de mortes de todas as pessoas, incluindo os 375 jovens entre os 15 e os 24 anos que morreram no ano passado.
Mas foi a estranha subida da taxa de mortalidade dos maiores de 85 anos, também ainda sem uma cabal explicação – e apenas possível se se analisarem as causas de morte per si, e não os fenómenos adjuvantes (como frio, ondas de calor ou mesmo gripe ou covid-19) – que justifica quase todo o excesso considerável de mortalidade (absoluta) que se registou em 2022. E, em consequência, do aumento da mortalidade absoluta nos últimos três anos.
Na verdade, a subida da taxa de mortalidade bruta – portanto, sem ser padronizada – apenas se justifica pelo envelhecimento e também agora por “distúrbios” nos cuidados de saúde dos mais vulneráveis.
Uma nota final para as conclusões do relatório do INSA, que entram em profunda contradição com os dados que são expostos, sobretudo com a tabela da página 21 e os gráficos da página 22. Na parte final refere-se taxativamente que “em termos relativos, os excessos de mortalidade foram inferiores a outros períodos de epidemias de gripe e de covid-19, o que poderá dever-se à menor atividade gripal observada em 2022, em especial nos grupos etários mais velhos (dados da vigilância da gripe não publicados) e à menor gravidade da infeção por SARS CoV-2 após a vacinação”.
Esta frase não encontra respaldo na realidade: como os quadros dos próprios investigadores do INSA expõem, a taxa de mortalidade do grupo etário mais idoso (maiores de 85 anos) agravou-se em 2022 face a 2021, exactamente quando surgiu uma variante menos letal (Ómicron) e depois do processo de vacinação com sucessivos boosters. O INSA nem academicamente coloca sequer a mais ténue hipótese de alguma coisa estar a correr mal com o próprio processo de vacinação: é tema claramente tabu, cuja hipótese jamais deve ser colocada em cima da mesa para ser descartada com provas científicas. Em prol da “Ciência”, claro.
Por outro lado, na ânsia de mostrarem que não houve assim tanto excesso de mortalidade não-covid, nem sequer se terão apercebido que destacaram inadvertidamente o ténue impacte da pandemia da covid-19 num contexto cronológico mais alargado. De facto, pela via das taxas de mortalidade por grupo etário, até os idosos do triénio de 2020-2022 se “portaram” bem melhor com uma pandemia em cima do que os idosos da mesma idade há pouco mais de uma década sem a pandemia. Basta ver pelos melhores quocientes de sobrevivência em cada um dos anos (o inverso da taxa de mortalidade).
N.D. Recomendamos a leitura e análise atenta do relatório do INSA, até para observar em maior detalhe os quadros e gráficos aqui referidos. E confirmar o rigor da análise do PÁGINA UM, que está em contraciclo com aquilo que têm sido as análises da generalidade da imprensa ao relatório em causa.