Regulador diz serem secretos documentos de processo sem fim

Caso Filipe Froes: Inspecção-Geral das Actividades em Saúde com nova intimação no Tribunal Administrativo

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O pneumologista Filipe Froes, figura mediática durante a pandemia e consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS), é também um dos médicos com mais conflitos de interesse, devido às suas ligações (em muitos casos promíscuas) com mais de duas dezenas de empresas do sector farmacêutico. Um processo de averiguações da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) foi-lhe levantado em Setembro de 2021, e até resultou num processo disciplinar em Fevereiro do ano passado. Mas tudo está a “marinar” há meses, e a IGAS nem sequer quer mostrar agora os documentos preparatórios, alegando segredo. O “jogo do gato e do rato” terminará com uma decisão do Tribunal Administrativo, por via de mais uma intimação – a única forma que o PÁGINA UM tem tido para aceder a documentos oficiais.


A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) está com um novo processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, intentado pelo PÁGINA UM, por recusar disponibilizar o processo de averiguações levantado ao pneumologista Filipe Froes em Setembro de 2021 por alegadas ligações ilegais à indústria farmacêutica. A intimação visa também obrigar o inspector-geral da IGAS a facultar o seu despacho que determinou esse processo disciplinar, que já dura há mais de 13 meses.

Esse processo de averiguações foi concluído em 19 de Fevereiro do ano passado, tendo resultado na abertura de um processo disciplinar àquele médico, que se destacou como figura mediática durante a pandemia, ao mesmo tempo que era consultor da Direcção-Geral da Saúde – definindo as terapêuticas para os tratamentos – e também consultor e palestrante de mais de duas dezenas de farmacêuticas.

Carlos Carapeto, inspector-geral das Actividades em Saúde, já perdeu um processo de intimação intentado pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa.

A acção do PÁGINA UM culmina quase um ano de um autêntico jogo do gato e do rato, onde a IGAS se tem furtado a disponibilizar elementos que possam trazer mais luz sobre os meandros das ligações promíscuas entre certos médicos e a indústria farmacêutica.

Em finais de Outubro do ano passado, o PÁGINA UM chegou a obter uma sentença favorável do Tribunal Administrativo de Lisboa para aceder a várias dezenas de processos intentados nos últimos anos pelo IGAS, mas, ao contrário do expectável, não estava ainda incluído qualquer documento referente a Filipe Froes.

Mais tarde, em finais de Novembro, a IGAS acabou por revelar ao PÁGINA UM que o processo de averiguações sobre Filipe Froes, que fora conhecido desde Setembro de 2021, tinha resultado num processo disciplinar em 19 de Fevereiro de 2022, por determinação do inspector-geral Carlos Carapeto, mas então ainda não concluído, estando assim em segredo. Quatro meses depois, continua sem estar concluído, significando que está a “marinar” há mais de 13 meses.

Filipe Froes foi o autor de um livro patrocinado por uma farmacêutica (BIAL), mas não se encontra registo de qualquer apoio no Tribunal Administrativo.

Ora, mas de acordo com a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, “o acesso aos documentos administrativos preparatórios de uma decisão ou constantes de processos não concluídos pode ser diferido até à tomada de decisão, ao arquivamento do processo ou ao decurso de um ano após a sua elaboração, consoante o evento que ocorra em primeiro lugar”, acrescentando-se ainda que “o acesso ao conteúdo de auditorias, inspeções, inquéritos, sindicâncias ou averiguações pode ser diferido até ao decurso do prazo para instauração de procedimento disciplinar”.

Nessa medida, mesmo que a IGAS queira, e eventualmente até por pressão política, adiar sine die a conclusão do processo disciplinar a Filipe Froes para manter o secretismo das eventuais ilegalidades por si cometidas, a legislação parece determinar, de forma inequívoca, que todos os procedimentos prévios ao processo disciplinar (processo de averiguações e despacho do inspector-geral) passaram a ter acesso não protegido desde 19 de Fevereiro passado.

A IGAS, contudo, tem opinião distinta, salientando que “o processo disciplinar é de natureza secreta até à acusação, incluindo, naturalmente o inquérito que o precede”, invocando mesmo uma norma da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.

Porém, nessa norma nada se refere sobre o inquérito precedente, neste caso o processo de averiguações, uma vez que simplesmente se diz que “o processo disciplinar é de natureza secreta até à acusação, podendo, contudo, ser facultado ao trabalhador, a seu requerimento, para exame, sob condição de não divulgar o que dele conste.” Por agora, o PÁGINA UM pretende pelo menos ter acesso ao processo de averiguações e ao despacho para a abertura do processo disciplinar.

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A IGAS chega também a alegar que a norma da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos que concede o direito de “acesso aos documentos administrativos preparatórios de uma decisão ou constantes de processos não concluídos” pelo menos ao fim de um ano se aplica apenas a “informação ambiental” – um equívoco, certamente, porquanto essa norma refere-se às restrições ao direito de acesso aplicável a qualquer tipo de documento administrativo.

Saliente-se que, ao longo dos meses, a IGAS nunca quis adiantar quais os motivos de tantos meses para a instrução deste processo disciplinar, tendo laconicamente informado que vem no seguimento da “informação de avaliação n.º 149/2022”, que mereceu um despacho em 19 de Fevereiro passado do inspector-geral Carlos Carapeto, que deu instruções para ser iniciado um processo disciplinar, ignorando-se também o “castigo” eventualmente a aplicar.

Em todo o caso, a decisão de instauração de um processo disciplinar a Filipe Froes após um processo formal de averiguações – revelado em Novembro do ano passado pelos semanários O Novo e Expresso – mostra já a existência de fortes indícios de irregularidades e/ ou ilegalidades.

De facto, o processo de averiguações só avançaria para uma fase posterior se se tivesse apurado matéria suficiente para uma “condenação” em processo disciplinar, o que não surpreenderá, tendo em conta o que se foi tornando público.

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O PÁGINA UM tem acompanhado as relações promíscuas de vários médicos e, particularmente de Filipe Froes, neste caso pelos montantes envolvidos e pelas acções em que participa que se confundem com marketing. Além disso, o PÁGINA UM já detectou, através de declarações de Filipe Froes no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed sinais de alguma “contabilidade criativa” para que não fosse ultrapassada a média anual (no último quinquénio) de 50 mil euros de recebimentos da indústria farmacêutica. Esta é a fasquia monetária a partir da qual Froes ficaria impedido de ser consultor da DGS.

Mas também existem suspeitas de que Filipe Froes é apoiado por farmacêuticas sem que estas registem os montantes no Portal da Transparência do Infarmed. Exemplo disso passou-se com a antologia de crónicas que publicou no Diário de Notícias com o patrocínio (ainda não declarado) da farmacêutica Bial, que nunca respondeu ao PÁGINA UM sobre essa matéria.

Apesar de trabalhar em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS), Filipe Froes é um dos médicos portugueses com maiores relações com as farmacêuticas, que aumentaram com a sua exposição pública no decurso da pandemia. Além de coordenar uma unidade de cuidados intensivos do Hospital Pulido Valente, este pneumologista também liderou o Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 e tem, nos últimos dois anos, como consultor da DGS, participado activamente na elaboração de normas técnicas relacionadas com a pandemia. Foi também mandatário da lista de Carlos Cortes, o novo bastonário da Ordem dos Médicos.

Filipe Froes (ao centro) foi o mandatário da candidatura vencedora de Carlos Cortes (quarto à esquerda) a bastonário da Ordem dos Médicos.

De acordo com o Portal da Transparência e Publicidade, Froes estabeleceu, desde 2013, mais de 270 contratos comerciais, em seu nome ou na sua empresa Terras & Froes, com 22 farmacêuticas. O montante global já alcançado ultrapassa os 400 mil euros. Nos dois primeiros anos da pandemia (2020 e 2021), o pneumologista encaixou uma média mensal de 4.065 euros, valor superior ao que ganha como médico do SNS. No ano passado também ultrapassou a fasquia dos quatro mil euros por mês.

Este ano tem sido mais “comedido”: recebeu no primeiro trimestre “apenas” 6.620 euros, o que representa pouco mais de 2.200 euros mensais. Contudo, convém salientar que o Infarmed não faz, por rotina, qualquer tipo de fiscalização destes registos, pelo que se mostra fácil receber dinheiro e outras ofertas de farmacêuticas sem declaração no Portal da Transparência, como aliás fez o antigo bastonário da Ordem dos Médicos Miguel Guimarães.


Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM já intentou 17 processos de intimação desde Abril do ano passado. Saliente-se que o PÁGINA UM tem de garantir uma “provisão” para as situações em que possa ter sentenças desfavoráveis, o que acarretará o pagamentos de custas que podem ser elevadas por cada processo perdido.

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