Portugal deve ser o único país do mundo com a Presidência entregue a um Ser omnisciente.
Diariamente, cerca de dez milhões de portugueses escutam, ávidos de novidades e conhecimento, os discursos, as opiniões, os conselhos ou, simplesmente, os apartes do Chefe de Estado.
São horas de lições dadas sobre todos os assuntos, a todas as horas, em todos os dias do ano.
Não será uma Enciclopédia, com todos os temas bem arrumados e classificados, mas é, indiscutivelmente, um “google com pernas”.
Marcelo fala de tudo, e de todos, com uma convicção superlativa.
As frases saem, em catadupa, sobre ouvintes estarrecidos com tal sapiência.
Gestos, calculados ao milímetro, acompanham as frases numa coreografia que faz aumentar a confiança no orador.
Um rosto expressivo, onde ao olhar duro da reprimenda se segue um sorriso de desprezo dirigido aos que ousam pensar diferente, permite o aumento da credibilidade à enorme falange de portugueses formados na “universidade da vida”.
Seus indefectíveis votantes.
E são milhões, como o Facebook prova.
Marcelo é um mestre-escola do início do Século XX.
Impõe a sua autoridade, fala para ensinar e não para dialogar e é homem de certezas absolutas.
Tudo com ar paternal.
Os raros momentos em que não nos entra pela casa adentro, em conluio com os canais de televisão, permitem-nos analisar todas as suas palavras com mais serenidade.
Discuti as conclusões a que cheguei, com alguns amigos, e para meu espanto vi que a maioria concordava comigo.
Marcelo discute futebol e ficamos a perceber que talvez entenda de Justiça.
Fala de defesa nacional e compreendemos que saberá de pesca.
Opina acerca de finanças e todos concordam que pode ser expert em gestão hospitalar.
Analisa a situação internacional e sentimos que é, quiçá, especialista em educação.
Aborda a guerra na Ucrânia e ficamos com a certeza absoluta de que é um profundo conhecedor de melões.
Comenta a qualidade dos vinhos, qual enólogo, e fica a convicção do seu saber sobre obras públicas.
Marcelo debate música clássica, com qualquer maestro consagrado, nos quinze minutos de intervalo de um jogo de futebol.
Faz crítica literária ao almoço, entre o prato de peixe e o de carne. Sempre com adjectivos ultra qualificativos.
Concede uma entrevista-monólogo nos vinte minutos que tem livres entre a recepção a um atleta português, terceiro classificado numa prova de badminton no Burkina Faso, e um jantar comemorativo dos vinte anos de existência da Sociedade Filarmónica de Boliqueime.
Analisa um orçamento de estado enquanto sobe as escadas de um avião que o levará para uma das dezenas de viagens que faz, anualmente, ao estrangeiro.
E, nesses países, o frenesim continua.
Reuniões com políticos e compatriotas, discursos em dezenas de cerimónias, inaugurações, distribuição de medalhas e bailaricos.
Nos discursos em línguas estrangeiras consegue esquecer a lição que todos os políticos deviam aprender antes de se aventurarem a falar noutra língua que não a portuguesa:
Poliglota é um indivíduo que sabe falar várias línguas, poliglota inteligente é o que sabe estar calado em vários idiomas.
Marcelo fala, consciente da sua omnisciência, um pouco de tudo.
Conclusões:
Marcelo não é, ainda, um político confiável.
Talvez nunca venha a ser.
Marcelo não é, ainda, Caetano.
Com a sorte que tem, talvez nunca chegue a ser.
Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
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