Depois de apagar contratos públicos relativos às compras de vacinas contra a covid-19 no Portal Base, o Ministério da Saúde quis ignorar o Tribunal Administrativo como tem feito com o PÁGINA UM. Mas a juíza do processo não foi pelos ajustes e deu um “ultimato”. Se, pela segunda vez, não responder ao Tribunal Administrativo de Lisboa com aquilo que lhe é solicitado, Manuel Pizarro pode ser condenado como litigante de má-fé. Entretanto, a adesão à vacinação está a aproximar-se do zero: na última semana com dados, apenas se vacinaram por dia menos de 600 pessoas; em Dezembro eram quase 18 mil. Mas Portugal pode estar obrigado a comprar mais doses mesmo que não as administre, daí o interesse em se conhecerem os contratos e as comunicações com as farmacêuticas.
No mês passado, o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, quis elevar ao absurdo os padrões de obscurantismo deste Governo no acesso à informação de documentos administrativos públicos, recusando responder ao despacho da juíza que analisa o processo de intimação do PÁGINA UM com vista ao acesso aos contratos de compra de vacinas contra a covid-19 assinados entre a Direcção-Geral da Saúde (DGS) e as farmacêuticas.
Mas um novo despacho da juíza Telma Nogueira, no passado dia 24 de Março, deixou-o sem margem de manobra, e mandou repetir a notificação para a “Entidade demandada [Ministério da Saúde] (…), em cinco dias, se pronunciar sobre o teor do requerimento apresentado pelo Autor [PÁGINA UM] em 06.02.2023, nomeadamente, quanto à existência dos contratos cujo acesso é peticionado nos autos, cf. doc. n.º 1 junto com a Petição Inicial.”
Nesse requerimento, o PÁGINA UM apresentou provas cabais da existência de quatro contratos integrais – ou seja, as cópias, que estiveram durante mais de um ano no Portal Base –, bem como das páginas expurgadas de quaiquer dados que actualmente constam na plataforma da contratação pública.
A sonegação daqueles quatro contratos foram feitos no Portal Base após a apresentação da intimação pelo PÁGINA UM em 31 de Dezembro do ano passado, e teve o claro objectivo por parte do Ministério da Saúde de convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa que nunca houve contratos assinados por nenhuma entidade da Administração Pública portuguesa e as farmacêuticas.
Além destes quatro, haverá um número indeterminado de outros contratos, uma vez que terão já sido adquiridas cerca de 45 milhões doses de vacinas e os quatro primeiros contratos englobam pouco mais de 10 milhões de doses. Porém, o número de 45 milhões de doses não tem nenhum documento de suporte; são meras indicações transmitidas pelo gabinete de imprensa do Ministério da Saúde aos órgãos de comunicação social. Também se ignora os montantes já pagos pelo Governo português às farmacêuticas.
A notificação ao Ministério da Saúde do despacho da juíza foi concretizada no dia 27 de Março passado, pelo que o prazo de cinco dias termina hoje.
Caso Manuel Pizarro dê instruções para não dar mais qualquer informação ao Tribunal, o Ministério da Saúde pode vir a ser condenado, desde já, como litigante de má-fé, conforme requerimento já apresentado no mês passado pelo PÁGINA UM.
Recorde-se que o PÁGINA UM apresentou (mais) este processo de intimação face à recusa do Ministério da Saúde em disponibilizar os contratos assinados entre a DGS e as farmacêuticas para a compra de vacinas contra a covid-19. Numa primeira fase, o Ministério de Manuel Pizarro começou por alegar a existência de uma auditoria em curso à gestão das vacinas, algo que nunca comprovou nem justificou, e que nem conflitua com uma consulta. E também tentou convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa de que não existiam contratos entre entidades públicas portuguesas e as farmacêuticas.
Tanto num ofício da DGS, assinado por Graça Freitas, enviado ao PÁGINA UM em Dezembro, como num requerimento de defesa do Ministério da Saúde, argumenta-se que, no âmbito da aquisição de vacinas contra a covid-19 se “estabeleceu um processo de contratação central”, através dos denominados Advance Purchase Agreements (APAs), entre a Comissão Europeia e as farmacêuticas, acrescentando que isso “dispensa[ria] os Estados-membros de qualquer procedimento adicional de contratação”.
Mas isso não é verdade, como comprovou o PÁGINA UM. Durante cerca de dois anos, constaram quatro contratos no Portal Base assinados pela DGS: dois com a Pfizer e outros dois com a Moderna. Os quatro contratos originais encontram-se no servidor do PÁGINA UM.
Porém, estes quatro contratos abrangiam uma percentagem minoritária das cerca de 45 milhões de doses supostamente adquiridas pelo Governo, razão pela qual o PÁGINA UM requereu o acesso aos outros contratos, bem como às guias de transporte e às comunicações entre farmacêuticas e Ministério da Saúde. O objectivo também é de saber se existem indicações sobre compras obrigatórias futuras e cláusulas sobre responsabilidades futuras em caso de reacções adversas graves.
Recorde-se que Portugal terá já gastado mais de 675 milhões de euros com vacinas contra a covid-19, mas está em risco de deitar para o lixo mais de oito milhões de doses, no valor estimado de 120 milhões de euros, face ao desinteresse manifestado nos últimos meses pelos portugueses na toma dos denominados boosters.
Além disso, os acordos assumidos pela Comissão von der Leyen – e que tanto polémica já suscitam – poderão obrigar o Estado a assumir compras obrigatórias de mais 500 milhões de euros de vacinas mesmo que não as administre.
Face às manifestas mentiras do Ministério da Saúde, o PÁGINA UM remeteu ao Tribunal Administrativo de Lisboa um conjunto de provas documentais sobre a existência dos quatro contratos do início de 2021, bem como do “apagão” desses documentos no Portal Base ordenado pelo Ministério da Saúde.
Em consequência, a juíza do processo, Telma Nogueira, exarou um despacho no passado dia 20 de Fevereiro com o seguinte conteúdo: “Notifique a Entidade demandada [Ministério da Saúde] para, em cinco dias se pronunciar sobre o teor do requerimento apresentado pelo Autor [PÁGINA UM] em 06.02.2023, nomeadamente, quanto à existência dos contratos cujo acesso é peticionado nos autos, cf. doc. n.º 1 junto com a Petição Inicial.”
Mas o Ministério da Saúde decidiu simplesmente ignorar a ordem do Tribunal, nem sequer respondendo à juíza Telma Nogueira, consubstanciando assim a prática de litigância de má-fé. De facto, de acordo com o Código do Processo Civil, um litigante de má-fé é a parte que, “com dolo ou negligência grave”, por exemplo, tenha “alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa” ou “tiver praticado omissão grave do dever de cooperação”.
Se recusar uma segunda vez, aparentemente não restará à juíza do processo outra opção que não seja considerar que ostensivamente o Ministério da Saúde se recusa a colaborar com um Tribunal.
Além do interesse em perceber quais as verbas que foram já gastas pelo Governo português com as vacinas contra a covid-19, o PÁGINA UM pretende verifcar se constam condições específicas para aquisições futuras, daí que tenha requerido também as comunicações entre entidades públicas e as farmacêuticas.
Sabe-se que os compromissos estabelecidos pela Comissão von der Leyen com as farmacêuticas incluem compras adicionais que, aparentemente, não serão usadas. Com efeito, a procura por vacinas contra a covid-19 têm estado em queda livre à medida que a confiança neste fármaco, tanto em termos de eficácia como de segurança, tem decaído.
Por exemplo, em Portugal, de acordo com o último relatório sazonal, relativo à semana 12 deste ano (20 a 26 de Março), apenas foram vacinadas contra a covid-19 uma média diária de 561 pessoas. Em Dezembro do ano passado, na semana 50 de 2022, foram vacinadas 17.960 pessoas por dia. A procura pelo booster sazonal (Inverno) na população com menos de 50 anos terá sido de cerca de 1%, enquanto no grupo etário dos 50 aos 59 anos foi de apenas 45%.
A baixa adesão pode ter, como consequência imediata, a perda de validade de lotes de vacinas. O PÁGINA UM estima que, incluindo as já entretanto destruídas, Portugal venha a desperdiçar oito milhões de doses de vacinas contra a covid-19 no valor de 120 milhões de euros, já pagos às farmacêuticas.
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