EDITORIAL

“Jornalistas comerciais”: a cagufa dos vendilhões do templo

Editorial

por Pedro Almeida Vieira // Abril 6, 2023


Categoria: Opinião

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Ontem, o PÁGINA UM revelou, em primeira-mão, a deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) sobre os contratos comerciais entre o Porto Canal e entidades públicas, que resultou na abertura de três processos, o envio de uma comunicação ao Tribunal de Contas e a remessa de um caso de participação de um jornalista na execução de contratos de índole comercial para efeitos disciplinares junto da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista.

O assunto é de inegável interesse. Basta observar outras situações em que a ERC e o canal televisivo associado ao Futebol Clube do Porto, presidido por Jorge Nuno Pinto da Costa, se envolvem.

A jornalista e pivot da SIC Marta Atalaya durante uma conferência no âmbito de uma parceria comercial entre o seu empregador e uma farmacêutica.

Porém, o assunto não foi pegado, até agora pela imprensa, apesar da notícia do PÁGINA UM ter já um número muito apreciável de leituras (já acima das 12 mil, por agora). E não digo, desta vez, que seja por uma certa “aversão”, na imprensa mainstream, a se citar o PÁGINA UM – que tem funcionado como uma espécie de “consciência pesada”. Basicamente, é por cagufa.

Sim, cagufa. Miúfa. Cagaço. Medo, enfim.

Sim, porque – e aleluia!, elogie-se! –, finalmente a ERC entendeu que a vergonha tinha de parar. No decurso da análise do regulador ao Porto Canal esteve, em grande medida, a identificação de ligações entre jornalistas habilitados com a carteira profissional e contratos comerciais que , directa ou indirectamente, estipulavam tarefas, compromissos e funções de informação. Ou seja, colocavam a independência e a linha editorial em causa.

Bem sei que há muitas equipas de marketing e muitas administrações e direcções de grupos empresariais de media – na verdade, quase todas – que surgem agora a defender que a evolução do mercado levou à necessidade de reformulação de conceitos comunicacionais e blá blá blá blá… Tudo tretas: uma coisa são os canais de comunicação, que podem e devem – por questões de sustentabilidade financeira – ser veículos de mensagens publicitárias; outra coisa é garantir, mesmo que caia Carmo e Trindade, que os “conteúdos” informativos têm de ser isentos, rigorosos e independentes, e executados por jornalistas que nada devem fazer na parte comercial ou de marketing.

Rosalia Amorim, directora do Diário de Notícias, é uma habitué na moderação de eventos realizados pela Global Media e pagos pelo Estado, empresas e autarquias.

E essa independência pode – e deve – ser completa, mesmo arriscando a perda de clientes das tais mensagens publicitárias. Mais vale a morte do Jornalismo do que um Jornalismo Prostituto. Siga-se pois a máxima de Cristo, segundo o Evangelho de São Mateus: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Ou, prosaicamente, “Dai, pois, ao Marketing o que é do Marketing, e ao Jornalismo o que é do Jornalismo”.

Mas o Jornalismo nunca morrerá. A prazo, é sempre a isenção, o rigor e a independência da informação que sustentam um órgão de comunicação social. Não o digo com o mesmo modelo do PÁGINA UM – que leva ao extremo essa máxima, como contraponto, renunciando às receitas publicitárias. O modelo do PÁGINA UM serve sobretudo para demonstrar que a qualidade “vende” até mesmo se o produto é “oferecido”, seguindo os princípios económicos da disposição a pagar (willingness to pay). Se o produto “qualidade” for escasso, as pessoas valorizam-no.

A isenção, o rigor e a independência podem não trazer anunciantes imediatos, mas trazem leitores, trazem consumidores das tais mensagens publicitárias; e garante-se assim “fluxo normal e saudável”: as empresas pagam para apenas anunciar os seus produtos e mensagens num órgão de comunicação social de uma forma independente da informação.

Público, e o seu director Manuel Carvalho, têm executado contratos comerciais susceptíveis de interferirem com a independência editorial do jornal.

Ora, aquilo que foi sucedendo com a imprensa – sem prejuízo das novas tecnologias – foi a subversão deste equilíbrio, de sorte que se vendeu a alma ao diabo. Começou-se com publireportagens – que mesmo assim tinham uma clara distinção entre o conteúdo jornalístico – e acabou-se nisto: na mais completa e pornográfica promiscuidade entre entidades públicas e privadas e órgãos de comunicação social, com os seus jornalistas transformados em tarefeiros para executar contratos comerciais, sem que o leitor se aperceba se aquilo que lê, ouve e/ou vê é um produto jornalístico ou é afinal uma encomenda paga pelo patrocinador.

Aquilo que a ERC finalmente fez com os contratos do Porto Canal, com a deliberação divulgada pelo PÁGINA UM, é somente a ponta de um icebergue que temos, ao longo dos últimos meses aqui anunciado. O jornalista Pedro Carvalho da Silva, do Porto Canal, é apenas um dos muitos “jornalistas comerciais” da nossa praça.

E estamos a falar ao mais alto nível. Ou seja, de jornalistas com cargos de direcção. Por exemplo, Manuel Carvalho, o ainda director do Público, ou David Pontes, que o vai substituir em Junho, já participaram activamente na concretização de diversos contratos comerciais, através da sua presença como moderadores em tarefas estipuladas nos cadernos de encargos.

Na Mobi Summit do ano passado, um evento de uma empresa municipal de Cascais, chegou a ser nomeado um “curador editorial”, Paulo Tavares, antigo jornalista, que coordenava a cobertura mediática pelos periódicos da Global Media. Esta função não existe na Lei da Imprensa nem os jornalistas podem estar sob a alçada de pessoas sem carteira profissional de jornalista ou equiparado.

Rosália Amorim (CP 1788), pela sua tamanha presença em eventos de índole comercial, é de jure directora do Diário de Notícias, mas parece acumular de facto o cargo de comercial da Global Media. Mas está longe de ser a única neste grupo de media.

Há alguns meses, em Outubro do ano passado, noticiámos que num evento (Mobi Summit) patrocinado por uma empresa municipal de Cascais quase todos os debates foram moderados por directores das publicações da Global Media, demonstrando a forte ingerência de jornalista num evento comunicacional. Além de Rosália Amorim, também Joana Petiz (directora-adjunta do Diário de Notícias e directora do Dinheiro Vivo, CP 4449) e Pedro Cruz (director executivo da TSF, CP 1611) moderaram três debates, cada um. Pedro Ivo Carvalho, director-adjunto do Jornal de Notícias, CP 3104) moderou dois e Jorge Flores (editor executivo do Motor 24, sem registo de carteira profissional) um.

Neste evento, a quantidade de “jornalistas comerciais” foi avassaladora. Por exemplo, Rute Coelho (CP 1893) tanto escreveu no Diário de Notícias como no site do evento Portugal Mobi Summit. Esta jornalista, com mais de 20 anos de experiência, revelou-se como um dos casos evidentes de “mercantilização” do jornalismo, impedido por lei, uma vez que oferece serviços de relações públicas e consultoria em marketing no LinkedIn. Além desta, houve participação na cobertura mediática por mais três jornalistas Elisabete Silva (CP 4391), Ana Meireles (CP 2808) e Carla Aguiar (CP 739), que foi a autora da peça sobre a intervenção do ministro Duarte Cordeiro. Esta jornalista do Jornal de Notícias fez também pelo menos uma entrevista a um participante do Mobi Summit antes da realização do evento.

Para completar o leque de directores que já tiveram tarefas promíscuas, identifico também Inês Cardoso, directora do Jornal de Notícias, e Mafalda Anjos, directora da Visão. Sobre a Visão, aliás, regressarei ao tema em breve.

O jornalista Bernardo Ferrão, que apresenta também o Polígrafo SIC, já moderou conferências de índole comercial entre a Impresa e farmacêuticas.

Por diversas vezes falei aqui também numa dupla de “jornalistas comerciais”, que personificam a libertinagem absoluta e absurda, onde já nenhuma fronteira de decência e ética subsiste. São eles os jornalistas Francisco de Almeida Fernandes (CP 7706) e Fátima Ferrão (CP 6197), que a pretexto de trabalharem numa agência de produção de conteúdos, fazem tanto notícias como free lancers para periódicos, sobretudo da Global Media e da Impresa, como conteúdos patrocinados para cumprimentos de contratos comerciais nessas mesmas empresas de comunicação.

A empresa onde trabalham estes jornalistas (a Mad Brain) concebia e executava a revista Energiser da Galp, fruto de uma parceria comercial com a Impresa. Nada lhes aconteceu desde que o PÁGINA UM denunciou este fartote de indecência.

Aliás, foram as promiscuidades (e ainda mais pornográficas, porque nada se esconde) detectadas, que o PÁGINA UM, em Maio do ano passado, em vez de continuamente fazer notícias, acabou por elencar 56 contratos suspeitos (e juntou posteriormente mais cerca de uma dezena), envolvendo os principais grupos de media e entidades públicas, onde aparentemente se exigia a participação activa de jornalistas para a sua execução, numa clara ingerência na linha editorial independente que se exige. E mandou tudo para a ERC, a aguardar comentários. A ERC prometeu averiguar, e espero ainda sentado.

A Mad Brain é uma empresa de conteúdos onde dois jornalistas tanto escrevem notícias como conteúdos patrocinados, e onde, na verdade, se ignora se as notícias são ou não também conteúdos patrocinados.

Nesse lote seguia, por exemplo, uma entrevista ao bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas em cumprimento de um contrato comercial, que foi publicada no Diário de Notícias.

Mas não estava ainda incluída a participação de jornalistas da SIC na execução de um contrato de 31 mil euros entre a Impresa e a Ordem dos Contabilistas para a cobertura de um congresso, onde vários jornalistas a darem o “corpo ao manifesto”, como foram os casos dos pivots e jornalistas Bento Rodrigues (CP 1270) e Rodrigo Pratas (CP 3979) e dos jornalistas Débora Henriques (CP 5674) e Afonso Guedes (CP 7857).

E isto só para citar os contratos com entidades públicas, cujos contornos são conhecidos. Imagina-se apenas o que se passará com empresas privadas, onde os contratos ficam no segredo dos deuses. Com as farmacêuticas, por exemplo. Pela amostra de que já falei aqui, dá para se ter uma ideia do regabofe.

Por tudo isto, compreende-se que muitos vendilhões do templo não estejam muito interessados em noticiar que a ERC – esperando que não seja isto o canto do cisne do actual Conselho Regulador, a ser eliminado pelo próximo – anda agora, finalmente, à “caça de jornalistas comerciais”; daqueles que, na verdade, têm contribuído para a perda de confiança pública na imprensa.

ERC identificou, pela primeira vez, um jornalista por estar associado à concretização de um contrato comercial. O primeiro de muitos ou um canto de cisne?

É preciso uma lavagem de ética na profissão, por muitas dores que tal cause, e por alguns empregos que se percam. Depois deste “tiro” da ERC com a deliberação sobre o Porto Canal, não é mais suportável a inacção da corporativa (e cultora do amiguismo) Comissão da Carteira Profissional do Jornalista nem a postura ambígua do Sindicato dos Jornalistas, que criticam estas promiscuidades, mas que calam na hora de identificar nomes e responsabilizar atitudes.   

Espero que este seja o primeiro passo para inverter o actual pântano do jornalismo português. Precisamos, cada vez mais, de uma imprensa forte e credível – e credível pelo seu rigor e independência, e não pelos fatos & gravatas & voz certa, ou pela maquilhagem & postura & beleza. Sem uma imprensa forte e credível, com uma imprensa na dependência financeira de patrocinadores que mexem os cordelinhos da linha editorial, apenas teremos informação oca e manipulação grosseira, tudo aquilo que mina uma democracia.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

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