a deriva dos continentes

Domingo de Páscoa

green bearded dragon

por Clara Pinto Correia // Abril 10, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

A analogia pode então erguer-se aos nossos olhos enquanto melhor instrumento de análise que possuímos – porque Deus trabalha de formas misteriosas. E de que outra forma nos seria possível ligarmos os grãos de areia no deserto às estrelas no céu?
Stephen Jay Gould
QUESTIONING THE MILLENNIUM, 1997


Domingo de Páscoa, aqui em Estremoz, é hoje, segunda-feira. Ainda ontem a cidade fervilhava de vida e de alegria, passavam leitões e cabritos inteiros rumos aos fornos de lenha, o pessoal ia e vinha para os montes para deixar tudo pronto quando chegasse a família, as famílias que iam chegando iam enchendo cada vez mais as esplanadas – mas nada daquilo era a Páscoa. Era só o prelúdio da Páscoa. Ao fim do dia tomei café com uns amigos muito dados a artes e a trabalhos manuais[1]. Foram eles que, quando souberam que eu ia passar a Páscoa[2] aqui em casa a trabalhar, insistiram com imensa veemência que, desta vez, é que eu não tinha mesmo desculpa para não ir visitar o Gonçalo, que é de Lisboa como eu, se mudou para Estremoz há oito meses, vive aqui mesmo ao pé de mim, é um verdadeiro solitário, parece infeliz, e eu bem podia ir mostrar-lhe todas as minhas cenas.


Mas eu não tenho nem o telefone do Gonçalo! Sei quem é, toda a gente sabe quem é, Portugal nunca teve nenhum grande profissional de monólogos de Shakespeare antes, mas eu nem sei se ele está em casa…” – “Meu, Clarinha, toda a gente sabe que o Gonçalo nunca sai de casa!” – “Então é porque não quer ver ninguém, certo? – “Mas tu és diferente. Vamos apostar. A mulher foi de férias para o Sudoeste e ele está sozinho com o puto, que é um mulatinho bué fixe de quatro anos chamado Miguel. Eu faço-lhes o catering…” – “O catering?” – “E então? Os monólogos de Shakespeare não chegam? O gajo também precisava de cozinhar?” – “Se fosse uma gaja, precisava[3]” – “Ah, vamos mas é apostar. Eu ligo. Se ele atender, e se disser que quer que tu vás lá, tu vais?” – “Vou” – “Juras?” – “Juro:”

Está-se mesmo a ver. Um gajo que não sai de casa nem atende o telefone, o que mais vai querer é visitas da Clara Pinto Correia.

Só que o caterer levanta o polegar quando esse Gonçalo atende, diz-lhe que está a ali a Clara Pinto Correia que o admira, e se ela pode ir visitá-lo. E põe aquela merda no alta-voz mesmo a tempo de ouvirmos um gajo responder, mesmo à rádio,

“Sim!”

E pronto, lá vou eu até à porta do actor dos monólogos, com a juventude toda a espiar para ter a certeza de que eu entro mesmo, o que faz o dito cujo actor puxar-me para dentro com força, atirar comigo ao chão, trancar a porta quatro vezes, e depois fechar também a corrente. Foi tanta manobra que deu tempo para voltar a levantar-me, recompor-me, e sentar-me numa poltrona super-confortável estrategicamente colocada mesmo ao lado do tal Miguel, que é, de facto, um amor de mulatinho. Ora, sabendo eu que a mulher dele é loura, de olhos azuis…

Eu sei que este título é meu, mas…
Que mais poderia dizer hoje, “Domingo de Páscoa” em Estremoz, depois de ouvir os segredos do Gonçalo, e o belíssimo monólogo que se lhes seguiu?

“Fizeram muito bem em adoptar o puto,” digo-lhe eu com um sorriso comovido. “Sabes, os meus dois putos também são adoptados. Já têm 31 e trinta anos, e eu já tenho cinco netos, e…”

O gajo abanou-me tanto o ombro que quase voltou a atirar-me ao chão.

“Antes de mais nada, cala-te já, enquanto vais a tempo. E sai já daí, porque estás na minha poltrona de improvisar monólogos para o Miguel e acabaste de interromper um!”

“Mas um actor não faz um monólogo de Shakespeare sentado. Tens que estar em pé, a fazer gestos, e a passear pelo palco, não é?”

“Pois é! Pois é. Mas eu, com estas dores, não me aguento em pé durante um monólogo inteiro” – esticou a mão para uma série de rolinhos que estavam na bancada dentro de um frasco de vidro fosco, tirou um charro, e começou a fumar – “Se queres que eu fale em pé, eu falo em pé assim, ou então não aguento. Mas então é melhor fumares também, senão és capaz de achar esta última parte do meu improviso muito estranha. Bora lá! Fuma! Eu pedi para tu vires cá para saber a tua opinião. O pior que te pode acontecer é teres que voltar cá amanhã, eu fico sentado, e ninguém fuma.”

“Ó Gonçalo, tu desculpa… antes de começares o teu monólogo, para eu depois nunca te interromper… que dores horríveis são essas, para dizeres que nem te aguentas em pé sem fumares charros… aliás, para nunca saires sequer à rua?”

Gajas,” ponderou o Gonçalo com a mão no queixo – e de repente desatou a rir tanto, tanto, tanto, que me fez rir a mim também. “Não aguentam não perguntar tudo. Olha, minha filha, isto é assim. Tenho imensas dores porque tenho um cancro do testículo, e foi por causa desse cancro que não tivemos filhos biológicos. Tinha dores, tinha cada vez mais dores, mas achei que haviam de passar, e quando a minha mulher me levou ao hospital já não saí de lá. Recuperei bem do cancro. O problema é que já tinha metásteses. Portanto estou para aqui sem saber quanto tempo duro. Vim viver para Estremoz para conseguir ter calma, para legar ao Miguel os monólogos de Shakespeare que serei eu próprio a escrever, e porque assim, também, não tenho as gajas lá de casa a entrarem e a saírem e a mandarem palpites e eu adoro-as mas tu nem imaginas o que aquelas gajas todas proactivas fazem da cabeça de um gajo desactivo” – “Desactivo não existe em Português, tem que ser desactivado” – “Ora bolas, mas desactivado não rima com proactivo e isto tem que rimar tudo porque é um monólogo de Shakespeare” – “Então usa inactivo, em vez de desactivo” – “Vai-te lixar, inactivas são as amibas, e isto ainda não está assim tão mal, meu.”

De tudo o que se seguiu neste meu estranho “Domingo de Páscoa” darei contas para a semana. Mas – se admirei a coragem do homem? Claro que admirei.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] As intenções não eram boas. Tratava-se de arrombar um portão – pelos melhores dos motivos, mas é sempre arrombrar a entrada para propriedade alheia. Ninguém foi na conversa, mas entretanto enredei-me eu na converva do Gonçalo.

[2] Ou seja, o dia de hoje, 2ª feira, em que tudo está fechado e nunca vi tanto lugar para arrumar.

[3] Esta mudaria habilmente o tema da conversa, não era? Noutro planeta que não Estremoz, talvez.

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