Todos temos um ângulo morto. E todos sabemos os riscos desse ângulo morto caso a viagem prossiga em velocidade acelerada e não tenhamos tempo de virar a cabeça para confirmar a nossa própria segurança.
Este nosso império onde arrastamos os pés na lama apostou há séculos num enorme amor por tudo o que esteja fora das fronteiras conhecidas. É a nossa grande força, mas pode ser uma enorme fraqueza.
O descontentamento de um curioso, ávido de novos pastores, depois de séculos de abusos de poder e quebras de confiança com os guias espirituais de Roma, depois do deboche tão bem denunciado por Sade, depois de atropelos sucessivos de vozes de denúncia a instalar a dúvida na mente de todos sobre cada padre, cada representante do divino na Terra, fez muitos beberem o que não compreendiam porque não lhes estava na pele e na alma colectiva que carregavam.
Eis que, em flagrante delito, vemos o que é um homem que ocupou o nosso imaginário (com a sua vida de sandálias) a passar de Estado em Estado, apelando a ajuda militar, clamando por apoio contra a anexação do lobo que lhe irrompeu pela porta (se vestisse caqui e fosse um actor eleito poderíamos até achar que vinha de outros lados), na sua baixeza vil.
Na sua tão natural violação de algo que, na nossa sociedade, (ainda) é sagrada conquista: protecção da inocência da criança e pudor. Respeito pelo corpo e a natureza íntima da partilha do mesmo. Respeito pela absoluta necessidade de consentimento adulto para essa partilha.
Lama.
Raramente a vemos até enfiarmos os pés naquilo que julgávamos sólido, e ficarmos sujos até aos tornozelos, lamentando a velocidade com que corremos a erguer uma bandeira.
Porque neste nosso império se abriram caixas de ressonância enormes, a reverberar ecos de opiniões e reacções, como em nenhuma outra parte do mundo, antes mesmo dos mecanismos de censura aparecerem e deitarem as unhas de fora, a raspar-nos as opiniões permitidas e não permitidas das costas, surgiram os spin doctors.
Não são profissão nova, nem tão pouco advento sem embasamento em mecanismos de propaganda tão antigos quanto as nossas estruturas de poder. São, regra geral, invisíveis, inteligentes e rápidos.
As redes sociais são pasto para estes doutores. São os especialistas de discurso. Os produtores de conteúdo. Os feiticeiros escondidos atrás da cortina que preparam pseudonotícias, análises, opiniões. Pequenos menus de degustação de fast food pronta a consumir, completos com imagens ilustrativas e impactantes.
Vem o Brexit e correm todos os visores de telemóvel com iscos sobre ameaças turcas ao povo britânico. Vem a “pandemia” e pululam os textos cheios de números, factóides, pedrinhas lamacentas no charco sobre como vamos todos morrer (e algo de novo, há?)
O malvado urso de leste põe uma pata em território alheio, e estrategicamente seus laboratórios (mas é uma coincidência), e logo correm resenhas enciclopédicas sobre uma nação mágica de searas douradas e céus azuis, pura, sagrada, inocente (e pode sempre ser isto e o resto também).
Os ângulos mortos instalam-se e abafam em gritos as outras faces de cada moeda. A quebra da cooperação europeia pela interferência americana no Reino Unido. Os custos altíssimos que nos forçaram a pagar por confinamentos, máscaras e inoculações experimentais. As ingerências externas em mais um país que serve de palco a uma guerra que não é sua, enquanto no leme seguem conduzindo nacionalistas de cepa alta, agressiva, feroz.
Lama.
Uma pessoa criada já neste mundo sem adultos, sujo de ideais contraditórios, barulhento por uma caixa de Pandora aberta com grande estrondo, entra num hospital em Faro e horroriza-se com o mundo real (será real?)
Com o nojo, o asco, a língua de fora. A sobranceria, o autoritarismo, a negligência.
O crime. Lama.
Claro que existe presunção de inocência (é bom que se lembre quem se apressou a condenar padres católicos). Claro que existe devido processo (é bom que se lembre quem vai para a lama gritar denúncias, mas e não tentou?) Claro que existe choque cultural (é bom que se veja o que é um texto cheio de imagens catitas do senhor doutor “spin”, a branquear o pecado ou a capitalizar o mesmo).
Claro que existe a lama, principalmente se a chuva de Abril chega e cobre a terra. Cuidado com o ângulo morto.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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