Recensão: O pensamento esotérico de Fernando Pessoa

O poeta místico

por Maria Afonso Peixoto // Abril 18, 2023


Categoria: Cultura

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Título

O pensamento esotérico de Fernando Pessoa

Autora

YVETTE K. CENTENO

Editora (Edição)

Companhia das Ilhas (Julho de 2022)

Cotação

17/20

Recensão

De origem germano-polaca, Yvette K. Centeno é um dos pesos-pesados, no feminino, da nossa literatura e considerada uma das maiores intelectuais do país. Escritora, poetisa e professora, é também uma investigadora, intensiva e extensiva, da vida e obra de Fernando Pessoa – e a prova é este livro, que teve a sua edição original em 1990 pela editora & etc, e surge-nos agora acrescida de um posfácio.

Licenciada em Filologia Germânica, Yvette Centeno fez a sua tese de doutoramento sobre A alquimia no Fausto de Goethe. E não é irrelevante para o caso. Fausto e Goethe são, aliás, nomes que surgem por diversas vezes ao longo deste O pensamento esotérico de Fernando Pessoa.

Este ensaio é algo intimidante, confessa-se, uma vez que nos coloca frente-a-frente com a genialidade de não uma, mas duas mentes. E os temas abordados não facilitam a tarefa: aqui cabe tudo o que é místico e oculto, desde a filosofia hermética, a religião, a Kabala, ao estudo de sociedades secretas como a Maçonaria e o Rosacrucianismo. Todos estes domínios se cruzam – na verdade, amiúde se sobrepõem –, pelo que é apenas natural que se fale de todos ao mesmo tempo.

A leitura desta obra não apela ao intelecto, pois, para esta nossa dimensão humana, adentrar nestas matérias é sempre como andar por areias movediças. As linguagens simbólicas não são decifráveis do mesmo modo que as ciências exactas. Porque aqui, nunca é o que está lá que importa, mas o que está implícito. É preciso ver-se com outros olhos. Afinal, como diz o poeta: “O mistério (que é tudo) não é compreensível senão à emoção, a inteligência não pode compreender o mistério”.

E Fernando Pessoa deseja ardentemente desvendar esse mistério, sem, no entanto, se deixar consumir por ele. Como assume, é “Mercúrio” que o guia, o Deus do conhecimento, o “Mestre do entendimento dos seres e da sua natureza”. 

Deste modo, ele não pretende integrar as sociedades secretas pelas quais parece interessar-se tanto. De facto, o que o move é a avidez de saber. Faz, aliás, uma “declaração de diferenças”, em que explica isso mesmo. Declara a sua simpatia pelo ocultismo, fazendo, contudo, a ressalva de que não é, ele próprio, um “ocultista”.

Há doutrinas que só podem ser transmitidas de forma codificada, porque como explica Pessoa, “divulgar é destruir”. Isto é, desvendar é inútil, quando não é também prejudicial, porque os incautos não vão entender – provavelmente irão, de qualquer modo, subverter o significado. E é por isso que a Bíblia, por exemplo “é ininteligível e absurda sem a chave ‘alquímica’”. E foi esta alquimia que o poeta nitidamente buscou em vida e, o que encontrou, está patente na sua obra.

Crítico do catolicismo, a “Igreja de Roma”, Fernando Pessoa parece, de facto, acreditar que a religião foi sempre mal compreendida: para o poeta, os Evangelhos são “rituais dramáticos, nada tendo que ver com qualquer realidade histórica”.

No seguinte trecho, o “nosso poeta” – nas palavras de Yvette Centeno – tece considerações dignas de destaque:

“A par do cristismo oficial, com os seus vários misticismos e ascetismos e as suas magias várias, nós notamos, episodicamente vinda à superfície, uma corrente que data sem dúvida da Gnose (isto é, da junção da Cabala judaica com o neoplatonismo) e que ora nos aparece com o aspecto dos cavaleiros de Malta, ou dos Templários, ora, desaparecendo, nos torna a surgir nos Rosa-Cruz, para, finalmente, surgir à plena superfície na Maçonaria. (…) As fórmulas e os ritos maçónicos são nitidamente judaicos; o substrato oculto desses ritos é nitidamente gnóstico. A Maçonaria derivou de um ramo dos Rosa-Cruz.”

E prossegue, aludindo à influência do movimento em algumas efemérides: “Pareceria absurdo citar esta subcorrente cristista, se a importância dela na história não fosse, apesar de ser oculta, enorme. Ela agiu fortemente na Renascença e na Reforma; a sua ingerência na Revolução Francesa é assinalada”.

Simpatizante da maçonaria – o seu avô era maçon –, o poeta discordou fortemente, em 1935, de um projecto-de-lei contra a Ordem Maçónica, que fora apresentado por um deputado.

Fernando Pessoa discorre, com a astúcia e profundidade que são tão suas, sobre os símbolos da “rosa” e da “cruz”. A cruz é a matéria e o movimento; a rosa é o mundo (Rosamund), “a vida divina” que enche essa mesma matéria e movimento. Juntas, são o “Resultado” ou a “Terra”.  A este respeito, uma das conclusões a que chega é que “o símbolo cristão completo e final é o símbolo da Rosa-Cruz”.

Quando ao cristianismo, diz-nos que é preciso “sentir” e, ao mesmo tempo, “repudiar”. A lógica (aparente ilógica) da contradição e do paradoxo é uma constante na dialéctica de Pessoa. Tal é evidente quando preconiza o “sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo”. A multiplicidade no sentir teve expressão máxima na sua heteronímia, sobejamente conhecida.  

Para Fernando Pessoa – e talvez isto ajude a explicar o seu fascínio –, a iniciação em sociedades secretas não é mais do que uma “mimetização”, em sentido figurado, no plano terrestre, de uma “iniciação verdadeira”. Como tal, as cerimónias maçónicas são meramente simbólicas. Para se ser um iniciado, não é, portanto, necessário pertencer-se a qualquer ‘ordem’. Ainda assim, e parafraseando o poeta: “Ao homem vulgar, que queira entrar as portas do oculto, diremos só uma coisa: não tentes! O oculto é que nos procura, não nós a ele”.

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