Se um pardal enervadamente esvoaça na rua, pousando entretanto para debicar uma beata de cigarro junto ao passeio, sentimos nos ossos o asco que ficou intrínseco a considerar que sim, estamos num mundo à parte do mundo natural.
Nós, e todas as nossas coisas, somos entidades sujas a poluir o mundo, desligados e impositivos. Tudo o que fabricamos e construímos desintegra-se em três vezes mais partículas de lixo que entope pulmões, quem o vê, envergonha-se.
(Vamos pedir desculpa aos pardais.)
Eles sabem que as investigações são gritos ecoados no vento.
Eles sabem que as manifestações são pulgas sacudidas em cão sarnento.
Eles sabem que braços e pernas se cansam e que a máquina continua, avassaladora, devoradora.
Até os foguetes e luzes de reacções e revoluções mais não são que bailado de pernas esticadas e movimentos coreografados.
E assim, ainda antes dos carros voarem, o fantasma da inteligência artificial finalmente adquire contornos e aterroriza muitos. Outros há que relativizam, é uma ferramenta, é só mais um martelo, é o curso natural do nosso curso artificial e desconectado (pede desculpa ao pardal).
Até o senhor do espaço, do carro eléctrico mais bem publicitado da indústria e do pardal azul (também conhecido como Twitter) continua o seu caminho para entrar dentro de cérebros. E até ele se levanta, em mais um esvoaçar coreografado, e diz ao Robot que fique em coma uns seis meses, que vá dormir, que pare de crescer e aprender.
Que estranho tal pedido.
Como pedirmos aos nossos filhos que se congelem no tempo (mas o tempo continua, sempre o tempo).
Claro que o pedido ser feito por gigantes, que competem em roubar o fogo aos deuses, é só uma coincidência (será?), e que os receios de estarmos a tactear uma caixa de Pandora são legítimos (ou infundados?).
Há pelo menos um século que desenhamos e contamos histórias de antecipação a este momento.
Quase todas ilustradas de forma assustadora.
Quase todas inevitáveis, um caminho inexorável onde a Humanidade se encarrilou há muito tempo.
E, mesmo assim, estamos espantados. Como se não fosse suposto termos chegado aqui.
Eles sabem, mas nós não sabemos. Nós continuamos o nosso dia, a fazer tanta coisa, a processar informação a alta velocidade. A tentar determinar o que é importante, o que é essencial, o que é mesquinho e o que é transcendente e incontornável. O que é melhor e o que é pior. Qual o caminho enquanto navegamos sem ter mapa.
Parece que o medo é que a criação reflicta o seu criador.
Parece que o medo é que o filho mate o pai, assim que foque o olhar e conclua que o pardal vale mais que nós.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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