Num espaço de poucos meses, o meu cenário profissional alterou-se. Os prazos esgotaram-me e as equipas de Engenharia, responsáveis pelo desenvolvimento de carros eléctricos, passaram a trabalhar a contra-relógio.
Há dois problemas base nesta indústria dos popós.
O primeiro é termos deixado de produzir veículos que nos levam de A para B para passarmos a produzir plataformas de entretenimento em cima de rodas. Ou seja, iPads com motor.
O segundo, consequência do primeiro, é que as pessoas se aborrecem depressa e, tal como nos iPhones, é preciso andar constantemente com novidades no mercado – ou, como diria Steve Jobs, a vender a mesma coisa com um novo design a um preço mais alto.
Há 10 anos, um carro desenvolvia-se em quatro anos e durava 10. Agora, cria-se em pouco mais de um ano e ao fim de dois já precisa de uns retoques. Óptimo para a bolsa de emprego, péssimo para os Verões em casa com a família.
Há, na verdade, ainda um terceiro problema, desde os primórdios, quando se contratou o primeiro profissional de propaganda: por norma, os génios do mercado e artistas do marketing prometem, naquelas galas de apresentação, coisas sem fazerem a mínima ideia daquilo que custa inventá-las.
Assim, os departamentos de Engenharia descobrem que devem criar um carro com asas, movido a azeite, não poluente, que se desloque sozinho e que venha com cinema e máquina de pipocas – e, de preferência, pronto para o mês que vem.
No meio do arranca-rabo que acontece, e das cabeças que vão rolando, ouço gritos. Nunca tinha ouvido gritos, e muito menos este tipo de exigência, na pacata e tranquila Suécia. Não se importa apenas o investimento chinês, mas também, aparentemente, alguns métodos de trabalho. O meu empregador é uma multinacional chinesa do sector automóvel.
No meio desta confusão e loucura em que se tornaram os sete dias da semana – sim, sete –, aparecem seis portugueses: uma equipa inteira de putos, com poucos meses de experiência, mas que, ao fim de poucos dias no lagar, já estão a produzir azeite de finíssima qualidade.
Engenheiros roubados a Portugal que chegam aqui sem nunca terem recebido um salário desse lado, e que, em pouco tempo, se adaptam a tudo o que lhes aparece pela frente: ao clima que não ajuda ninguém, ao modo de vida, aos ritmos de trabalho, às tecnologias que nunca viram. Aprendem enquanto vão fazendo, e destacam-se perante colegas muito mais velhos, com anos disto.
Olho para eles, e pergunto-me de onde virá tanta fome de aprender e, especialmente, tanta garra de colocar no mercado algo que nunca conseguirão comprar. Aqui entre nós, sinto algum orgulho neles. Não são meus filhos e, até há pouco tempo, nem os conhecia, mas a contribuição, entre tantas equipas, eleva, na minha opinião, o nome de Portugal.
Por cada um que chega e apresenta bons desempenhos, há sempre alguém do lado de quem contrata que pergunta: “há mais destes por lá?”.
E, dessa forma, acabam por ir abrindo caminho para o seguinte. São elogiados. Ouço-os várias vezes a receberem elogios. Imagino que fiquem satisfeitos com o reconhecimento numa fase tão precoce da carreira.
O que seria do nosso país se conseguisse reter todo este talento, nas diversas áreas, que emigram aos milhares todos os anos?
As diferenças de formação são também óbvias entre portugueses e outras nacionalidades. Não vou aqui referir quais são essas nacionalidades, mas direi, pelo que vejo em redor, que os tempos de aprendizagem são muito menores para estes miúdos que fogem dos lusos subúrbios e se lançam na selva da emigração sem grandes dúvidas ou receios.
O ensino público português é bom. Pelo menos, na minha área, posso perfeitamente comprovar que o investimento feito não é desperdiçado. Pode não ir para o PIB português, mas vai, com alguma certeza, para o PIB de um país desenvolvido qualquer.
E pergunto-me: onde é que errámos? Como é que ficámos tão pobres? De que forma é que fazemos este pessoal regressar e produzir em Portugal? São as três questões que coloco quase diariamente.
Triste fado de um país que forma, e bem, para benefício de outros.
Enquanto isto, para o ano, quando virem o novo e pequenino Volvo eléctrico na rua, ou o magnífico Polestar 4, saibam pelo menos que uma fatia do que lá vai dentro foi exclusivamente feito por portugueses.
E se tiverem um, aproveitem. Se forem como eu, que só trabalho neles, mas nunca os compro, em todo o caso apreciem, com ligeiro orgulho lusitano, quando passarem na faixa da esquerda.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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