De onde surgiu o denominado wokismo e a cultura do cancelamento? Jorge Soley, economista espanhol e professor universitário, acredita que o movimento remonta à Revolução Francesa, mas que bebeu muito do regime comunista de Mao Tsé-Tung. Em O manual do bom cidadão, editado em Portugal pela Dom Quixote, Jorge Soley explica as estratégias e mecanismos que os “zelotes wokes” utilizam para silenciar os “hereges” do século XXI, proibindo o debate, humilhando os “transgressores” e impondo a auto-censura. Evocando diversos casos de palavras, livros, estátuas, e pessoas “canceladas”, em Espanha e no mundo, apela para a resistência à ditadura do politicamente correcto, porque “a neutralidade já não é uma opção”. Em entrevista ao PÁGINA UM, Soley disseca este fenómeno, transversal a todo o Ocidente, não esquecendo de falar sobre os “cancelamentos” durante a pandemia.
Há quem critique aqueles que falam do ‘wokismo’ por não definirem, propriamente, o termo. Como deve ser definido?
Não é fácil defini-lo numa frase, porque creio que não seja um movimento unívoco, já que agrega diferentes influências. Mas se tivesse mesmo de o definir, diria que é a crença de que o mundo em que vivemos é estruturalmente horroroso e que temos de o transformar todo desde a raiz. E que quem quer que se oponha é má pessoa. Penso que há muitos aspectos da questão, mas um aspecto comum em todo o mundo ‘woke’ e politicamente correcto é não quererem discutir. Querem cancelar o debate. Eu tenho as minhas ideias, e há pessoas com ideias muito diferentes das minhas, e podemos falar e trocar argumentos; poderão até convencer-me que algumas das ideias que tenho são equivocadas e incompletas, e vice-versa. Mas, no mundo woke, algo muito característico é a eliminação do debate. Porque dizem: “não, se tu não estás de acordo com isto, és má pessoa, és a favor do racismo estrutural, das fobias, da homofobia estrutural, e contigo não se pode falar porque estás do lado errado da barricada”.
No seu livro fala das origens do movimento woke, defendendo não ser fenómeno de agora. Como surgiu?
Creio que é uma confluência de muitos factores e alguns, inclusivamente, contraditórios. Detecto na Revolução Francesa alguns elementos, por exemplo, com o que se passou durante o Terror. É a tal ideia de que todos os que não estão de acordo comigo são inimigos da Humanidade; foi o que aconteceu com Robespierre. Nos dois séculos que se seguiram, foram-se somando novos contornos e, no meu livro, falo da influência da Escola de Frankfurt, de Antonio Gramsci, de Mao. Mais do que Marx, de Mao. Acredito que Mao, Gramsci, e a Escola de Frankfurt são muito importantes para a visão ideológica do mundo woke.
De um modo geral, as pessoas ficam surpreendidas com a comparação que estabelece entre o Maoismo e o wokismo? Acham exagerado…
Bem, sim… O que é que eu encontrei em Mao? Encontrei vários elementos que me parece que são semelhantes ao que estamos a viver agora. Em primeiro lugar, chamou-me a atenção o facto de haver certas ideias não permitidas. Depois, outro paralelismo tem a ver com a Revolução Cultural. E também os fenómenos através dos quais, de repente, as massas se lançam sobre uma pessoa e a destroem. Evidentemente, na altura de Mao isso fazia-se com paus e afastando os professores que supostamente não compartilhavam do movimento maoista. Muitas vezes, havia castigos físicos. Hoje, evidentemente, o linchamento é feito nas redes sociais. Outro aspecto da Revolução Cultural é o exigir que os dissidentes, aqueles que não estão de acordo, se humilhem publicamente. E, para além disso, não basta humilharem-se, ficam estigmatizados para sempre. A escritora J. K. Rowling será para sempre uma “transfóbica”, porque já a rotularam assim. Mesmo que agora se arrependesse, seria igual, não valeria a pena, porque se pedir perdão é uma prova de que estava errado. Se eu cometo um erro, não tenho nenhum problema em pedir desculpa. Mas o que não vale a pena é desculpares-te numa tentativa de que te “salvem a vida”, ou que te perdoem, porque não te vão perdoar. Nem Mao, tão pouco, perdoava. A pessoa ficava marcada para sempre.
Também é professor universitário, e as universidades, no mundo ocidental, têm tido um papel significativo na difusão do “politicamente correcto”. Em Espanha, como é a realidade nas universidades?
Creio que em Espanha, como em todo o mundo ocidental, há alguns casos de professores submetidos a pressões, inclusive sob risco de perder o emprego, por dizerem o que teoricamente não se pode dizer: por exemplo, que há apenas dois sexos, e que a biologia não depende do que alguém pensa, é o que é. No entanto, penso que sobretudo o que procura a ideologia woke não é tanto castigar aqueles que dizem o que é supostamente incorrecto, mas sim a autocensura. E acho que em Espanha há muito medo e autocensura. Com a maior parte dos professores universitários vê-se uma grande diferença entre o que te podem dizer em privado e o que dizem publicamente. Ninguém quer problemas. Então, em privado diz-se algumas coisas, e depois, em público, sobre as “questões problemáticas”, fala-se de uma forma muito cuidadosa, e autocensuras-te. E penso que isso é um empobrecimento enorme para a dimensão intelectual. A meu ver, temos de dizer o que pensamos e argumentá-lo; a autocensura é sempre má. E, nas universidades, a autocensura está muito presente.
Teve algum tipo de represálias ou reprimendas, no seu círculo profissional, por se insurgir contra o politicamente correcto?
Na verdade, não tive problemas graves. Pode haver sempre alguém que te critica ou que te insulte, mas pessoalmente não me aconteceu nada de grave. E também é verdade que, onde estou, quem me rodeia até concorda mais ou menos com o que eu digo. Além disso, digamos, já tenho mais de 50 anos; se fosse um jovem universitário, com 25, 30 anos, teria mais cuidado e iria exercer uma maior autocensura sobre mim mesmo. Com a minha idade, já me autocensuro pouco.
No livro, utiliza o termo “patologização do dissidente”, que consiste em, além de se acusar os críticos das pautas woke de “discurso de ódio”, atribuir-lhes fobias várias, o que permite cancelar o debate de uma forma até paternalista ou condescendente…
Sim, parece-me que são tentativas de cancelar o debate, rotulam qualquer coisa de “discurso de ódio”, ou dizem que és louco e que padeces daquelas fobias. Por este caminho, acaba-se com a liberdade de pensamento e com a liberdade de expressão. Acho que é muito perigoso, e que se deve restringir o consenso do que é convencionado como discurso de ódio. Estritamente, deve ser algo que cause um dano real a outras pessoas. Tudo o resto tem de ser legítimo, numa sociedade democrática, e tem de se poder falar sobre. Na minha opinião, ninguém tem o direito a não ser ofendido. O problema da ofensa é determinar se houve ou não ofensa; é subjectivo, é da própria pessoa. Então, qualquer coisa, até uma pergunta, pode subjectivamente considerar-se ofensiva. Se aplicássemos esse critério, num mundo woke, se eliminarmos qualquer expressão passível de ser ofensiva, acabaremos a não poder falar. Então, acredito que temos que nos poder expressar em liberdade, e isso significará que haverá coisas que ofenderão as pessoas. Têm que se assumir isso nas democracias ocidentais, faz parte do debate poder ser ofensivo. A mim, há coisas que me dizem que me ofendem, mas eu, diante disso, em vez de “cancelar” quem o disse, tento dar-lhe argumentos para fazer a pessoa ver que aquilo que disse é um disparate. Se, ainda assim, a pessoa me quiser ofender, bom, é um problema seu. Mas, enfim, creio que é algo que faz parte da nossa vida em comum, da nossa civilização.
Há um apelo à vitimização?
Sim, agora, parece que o segredo para prosperar nesta sociedade é encontrar um grupo ao qual possas aderir, e onde possas dizer que te vitimizaram, que és uma vítima. Houve um momento em que fazíamos piadas sobre “vitimizar” os gordos, os condutores de camiões, os comedores de pizza. E, o que era uma piada, entre amigos, agora, há quem o reivindique, dizendo que existe uma pizzafobia e que os comedores de pizza – que não comem saudavelmente – são vítimas de uma sociedade que os obriga a consumir. Ou seja, no movimento woke, perante qualquer disparate que te ocorra, é muito provável que se torne realidade – é apenas uma questão de sentar e esperar; se esperares algum tempo torna-se realidade.
Fala também sobre como os “desejos” de certos grupos se transformaram em clamores por direitos. Acha que os wokes instrumentalizam a narrativa dos direitos humanos para conseguirem o que querem?
Sim, eu creio que sim, existem direitos, que são universais e são para todos os Homens. Quando se fala nos direitos das minorias… quer dizer, são os direitos de todos, todos temos direitos! Aqui, o problema desta transformação do conceito de direito, é quando aquilo que eu desejo tem de se converter num direito. Se eu desejo, por exemplo, ter um filho, tenho o direito de o ter. E tenho de o ter, porque se é a minha vontade, então é o meu direito. Quando algo se transforma num direito desta forma… Um direito implica sempre um dever: o dever da sociedade e do Estado de garantir esse direito. Para mim, cada um tem o direito a tentar levar a vida que quiser. Mas não tem o direito a que esse direito lhe seja mesmo garantido, se por si mesmo não o consegue. Porque se o modo de vida a que aspiro envolve ter filhos, mas não os posso ter, eu não tenho nenhum direito a reclamar que, por exemplo, o Estado me pague um ventre de aluguer. O problema dessa inflação de direitos é que, no final, se gera uma inflação de deveres e isso parece-me muito perigoso, porque então, estamos a desvirtuar o que é a sociedade e o Estado para assegurar qualquer capricho de uma pessoa.
Há quem argumente que ser contra o wokismo é ser contra a igualdade de oportunidades. Como responde a esta crítica?
Acho que é o contrário. Opormo-nos ao wokismo é, precisamente, garantir igualdade de oportunidades para toda gente, independentemente do seu sexo, da sua raça, do que for. Nos Estados Unidos, a denominada política de identidade consiste em negar a igualdade para criar os novos privilegiados. Estes privilegiados são os grupos vitimizados. São os novos reis, os “aristocratas” que têm, por exemplo, ajudas do Estado, a quem se reservam lugares nas universidades e postos de trabalho. Os opositores do wokismo estão contra esta nova “artistocracia”; são a favor da igualdade de oportunidades para todos. Para grupos, minorias, todos. É um pouco aquilo que disse Martin Luther King, que sonhava com uma sociedade em que a cor da pele não tivesse importância. Eu creio que Martin Luther King, nisto, tinha razão. Hoje em dia, todos os defensores da Teoria Crítica da Raça, dizem que Martin Luther King era racista. Era um racista branco. Porque, afirmam, a sua visão, em defesa de uma sociedade em que ninguém é discriminado pela cor da pele, é, ao fim e ao cabo, consolidar o racismo estrutural branco. Mas eu acho que estão errados, e estou do lado de Martin Luther King.
Sim, segundo esses teóricos, é possível que um negro demonstre “branquitude”, ao ser bem-sucedido e não se mostrar oprimido, por exemplo. Também alegam que todos os brancos são inerentemente racistas, sem excepção. Trata-se de argumentos circulares e, por isso, de falácias?
Sim; não são, verdadeiramente, argumentos. Como são circulares, no final, digamos, são apenas dogmas de fé. Face a isso, não pode haver um debate racional, porque qualquer coisa que digas, para eles, demonstra precisamente que és um defensor do racismo estrutural. É igual. Não há debate, porque são afirmações dogmáticas e circulares.
Cita vários exemplos de “cancelamentos”, nomeadamente sobre transsexualidade, orientação sexual e racismo. Também houve, recentemente, o tema da pandemia, que mereceu muitos cancelamentos e rótulos, a médicos e investigadores reputados. No seu livro, contudo, acaba por não abordar muito esta questão…
Não sou cientista, por isso, na verdade, nunca me considerei negacionista nem nada, porque não tenho capacidade para julgar. Mas houve de tudo. Houve pessoas que disseram coisas que não se podiam comprovar; mas, depois, havia gente que dizia coisas pelas quais, num certo momento, foram canceladas porque se considerou que o que diziam era uma barbaridade, e que depois se viu que até tinham razão. Portanto, houve esse mecanismo de eliminar o debate com o rótulo de “negacionista”. Algumas pessoas, foram censuradas nas redes socais. E nas televisões públicas de Espanha foram excluídas porque expressaram dúvidas sobre o que dizia o Governo num dado momento. Coisas que, passado um ano, já se podia dizer e estava tudo bem, já não se era considerado negacionista por causa disso. Percebo que há momentos, como os que vivemos com a pandemia, em que havia muita incerteza e ignorância, não sabíamos o que enfrentávamos. Mas, apesar de tudo, há que assumir sempre riscos, é bom que as pessoas possam dar a sua opinião; e que possa haver um debate sobre as medidas, sobre as vacinas, os confinamentos e o seu impacto. Houve, por exemplo, uma pessoa que alertou para os confinamentos, porque poderiam ter um impacto muito negativo entre os adolescentes. E chamaram-no de tudo, disseram que não devia participar nos debates televisivos. E, agora, em Espanha, estamos a viver uma epidemia de suicídios adolescentes como nunca houve. Deveríamos tê-lo tomado em conta. Gostaria de pensar que, no futuro, se tivermos de enfrentar situações parecidas, possa haver mais debate e mais discussão civilizada, e ninguém seja destruído por dizer coisas diferentes das que diz, a cada momento, o Governo e o Ministério da Saúde.
Este livro tem como subtítulo “para compreender e resistir à cultura do cancelamento”. Como podemos, então, resistir e combater este fenómeno?
Devemos combatê-lo de todas as formas. Podemos combatê-lo na nossa vida quotidiana, não cedendo, tendo a coragem de falar com naturalidade e dizer o que pensamos. Acredito que isso é muito importante, que cada um de nós possa dizer aquilo que quiser, e que o diga em público sem ter problemas. Se toda a gente fizer isso, é difícil que nos detenham. E, por outro lado, digo sempre, também, que temos de apoiar os meios de comunicação, universidades, políticos e intelectuais que falam abertamente contra o wokismo. Há que apoiá-los, porque pode ser-se corajoso, mas depois quando te atacam, é difícil. Eu já falei com pessoas que me disseram que se sentiam muito sozinhas por terem falado. Portanto, temos de dizer o que pensamos e, sobretudo, apoiar as pessoas com essa coragem. Há quem não tenha muita capacidade de influência, mas aquelas pessoas que têm, e que falam, devem ser apoiadas; escrevendo-lhes e mostrando-lhes o nosso apoio. Creio que tem de haver uma mobilização para que falemos. E, aliás, que se apoiem, por exemplo, os jornais que publicam entrevistas comigo [risos].