Sento-me para escrever a Crónica semanal e recordo o início da minha vida profissional, no “Jornal do Fundão”, na década de 70 do século passado.
Dirigido por um Homem superior, António Paulouro, este Jornal era uma referência de coragem, de liberdade e de luta pelo fim da ditadura.
Quando integrei a Redacção, o Jornal tinha acabado uma suspensão de seis meses, imposta pelos tribunais do regime, por ter publicado uma notícia sobre o prémio atribuído, pela Sociedade Portuguesa de Autores, a Luandino Vieira pelo seu livro “Luaanda”.
Ainda hoje sinto a desilusão que, como jovem, senti ao perceber que tudo o que eu escrevia teria de ser lido e aprovado, antes de poder ser publicado, não só pelo chefe de redacção ou director mas, principalmente, por um coronel da Censura
E quando digo tudo, era mesmo tudo.
A mais pequena alusão à governação, fosse do Poder Central fosse da Junta de Freguesia da terra, era vista e analisada à lupa.
Muitas vezes, o censor conseguia descobrir, no mais anódino texto, intenções que nunca tinham passado pela cabeça do seu autor.
Verdade seja dita que, também muitas vezes, deixavam passar textos carregados de ironia e sarcasmo que os incultos coronéis não compreendiam.
De qualquer modo, era imensa a revolta que existia por sabermos que nada do que escrevêssemos poderia ser impresso sem que essa gente mesquinha, medrosa e consciente dos seus pequenos poderes autorizasse.
Várias vezes pisámos o risco vermelho, que a ditadura impunha, e o resultado eram processos judiciais.
Valia-nos a ignorância da maioria dos censores e polícias do regime.
Eram joguetes na mão dos governantes, obedecendo cegamente a todas as ordens que recebiam.
Recordo uma rusga ao Jornal, por um grupo de elementos da PIDE, que tinham, como função, apreender tudo o que se relacionasse com a política ultramarina.
Das estantes de livros do gabinete do Director carregaram todos os que tivessem, no título, uma alusão às “províncias ultramarinas”.
António Paulouro perguntou, espantado, a um dos agentes, se também iria apreender o livro que tinha nas mãos.
A resposta foi:
– “Evidentemente. O título ‘Factos e Figuras do Ultramar’, obriga-nos a isso. A ordem é, levar tudo que mencione o Ultramar.”
E apreendeu um exemplar do livro de Marcelo Caetano.
Que também não fazia muita falta, há que reconhecer.
Durante os anos em que trabalhei no Jornal, até ao 25 de Abril, fui impedido de escrever notícias sobre factos absolutamente humilhantes para cidadãos europeus.
Em Portugal não havia eleições, as mulheres não podiam viajar para o estrangeiro sem uma autorização escrita dos maridos, as professoras primárias não se podiam casar sem uma autorização especial, os funcionários públicos tinham que assinar uma declaração garantindo que partilhavam a ideologia do regime, rejeitavam a Maçonaria e garantiam não serem membros dela, antes de poderem tomar posse.
O Poder geria as organizações juvenis (nomeadamente na Mocidade Portuguesa) que usava para ensinar, aos jovens, a ideologia defendida pelo regime e a obedecer e a respeitar o líder.
Para além da PIDE, o regime apoiava-se, também, em organizações paramilitares, como a Legião Portuguesa, para proteger o regime das ideologias oposicionistas, com especial realce para o comunismo;
Os trabalhadores estavam impedidos de criar sindicatos. Só existiam os que eram controlados pelo Estado.
Os cidadãos estavam proibidos de falar contra o Governo, de emitir opinião, de ver filmes, peças de teatro ou revistas onde se pusessem em causa estas ideias.
Não tinham acesso a livros que defendessem opiniões diferentes das impostas pela governação.
A riqueza estava concentrada nas mãos de meia dúzia de famílias.
Portugal era um país “orgulhosamente só”, primeiro governado por um labrego que nunca tinha ido ao estrangeiro e que, de Portugal, só conhecia o gabinete, de onde ditava estas regras absurdas, e Santa Comba Dão, onde ia regar umas couves na sua pequena courela e, depois, por um professor universitário sem coragem para acabar com toda esta miséria intelectual.
O 25 de Abril foi, citando Sophia de Mello Breyner, o fim do período em que lamentávamos:
Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades
e passámos ao dia exemplarmente retratado como:
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Hoje, quando graças aos Capitães de Abril posso escrever o que verdadeiramente sinto, só lamento ter que viver, lado a lado, com imbecis que continuam a criticar o Dia da Liberdade e que só podem ser ou acéfalos (por quem tenho pena) ou fascistas (que odeio).
Critico, com veemência, muitas atitudes de quem nos governa, sabendo que tenho esse direito e esse dever.
Mas, com muito mais empenho, criticarei os que querem e pensam ter forças para voltar àquele passado que nos tornava inferiores.
25 de Abril, sempre!
Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
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