Título
Great Yarmouth: Provisional Figures (2023)
Género
Drama
País de origem
Portugal, França e Reino Unido
Argumento
Ricardo Adolfo e Marco Martins
Realizador
Marco Martins
Produtores
Kamilla Hodol e Filipa Reis
Actores principais
Kris Hitchen, Romeu Lima, Rita Cabaço e Robert Elliot
Nota
7/10
Recensão
Formado pela Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa, Marcos Martins é um realizador já experiente, com mais de uma vintena de prémios (23, mais precisamente), entre os quais o de melhor filme, com Alice (2005), no Festival de Cinema de Cannes e, mais recentemente, em 2018, com São Jorge, os de melhor argumento e melhor filme dos Prémios Sophia.
O seu mais recente filme, estreado no mês passado, é uma co-produção portuguesa (Uma Pedra no Sapato), francesa (Les Films de L'Aprés-midi) e inglesa (Elation Pictures), conta a história, baseada em testemunhos reais, da exploração laboral de emigrantes portugueses nos matadouros de peru, na vila costeira de Great Yarmouth, na região de Norfolk, três meses antes do Brexit em 2019.
De um bando de pássaros a voar, símbolos da liberdade, rapidamente a tela transporta-nos para um submundo escuro, com quartos degradados e superlotados, onde a miséria humana é equiparada aos animais, aqueles mesmos que os emigrantes portugueses, depois de se levantarem de madrugada rumo ao matadouro, depenam e esquartejam para alimentar as campanhas de Natal britânicas.
Marcos Martins estabelece essa ligação entre os perus mortos e a morte da dignidade humana em torno do capitalismo e da xenofobia. Os pork and cheese, termo pejorativo aplicado aos portugueses, não são mais do que parte duma máquina giratória cujas peças são facilmente substituíveis pela próxima fornada a chegar.
A actriz Beatriz Batarda é Tânia, uma supervisora que organiza o alojamento, alimentação e pagamentos destas fornadas de pessoas, que ela simultaneamente ajuda e engana, e é através do seu olhar que nos é dado a conhecer este mundo que ninguém quer ver.
Conhecida por Tat pelos britânicos e Mãe pelos portugueses, esta é uma mulher dividida entre o seu sonho de criar um lar para idosos, a partir do hotel do seu marido, que actualmente alberga, e exploração dos trabalhadores com a sua conivência e participação.
O trabalho cinematográfico desta personagem é brilhante. Nos grandes planos da cara de Tânia consegue-se ver bem a dureza do seu olhar pesado, as olheiras duras e o cigarro que está quase sempre entre a sua mão e a boca.
Uma outra menção que merece atenção é a indumentária de Tânia, que expõe a personagem entre dois mundos. Por um lado, Tat veste calças de fato de treino muito típicas de bairros britânicos; por outro lado, ostenta sempre um fio de cruz, carregando consigo a bagagem cultural e religiosa portuguesa e também o fardo das suas escolhas.
De destacar ainda a sonoplastia, sobretudo nas cenas íntimas, em que o corte repentino da música enfatiza a natureza crua do som diegético e assim oferece mais um grau de profundidade e dureza à personagem de Tânia.
Embora o filme conte com a participação de Nuno Lopes, detentor do prémio de melhor actor pelo filme São Jorge, é justo fazer menção a Raúl, interpretado por Romeu Runa. A par de Tânia, é uma representação individual de um colectivo de pessoas que emigraram com ambições e viram as suas vidas roubadas quer pelo álcool, quer pela exploração e pobreza.
Great Yarmouth é um filme que funciona como mensagem e documento na medida que alerta para uma realidade pouco falada e num período de emigração para o Reino Unido então muito mal vista pelos britânicos. Porém, serve também para nos mostrar, mais uma vez, o pior lado da natureza humana: a exploração do outro.
É assim definitivamente um filme a ver.