Causa-me estupor ter visto um bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, armado em Torquemada do século XXI, perseguindo outros médicos por delito de opinião.
Causa-me assombro assistir ao bastonário da Ordem dos Psicólogos, Francisco Miranda Rodrigues, com a pretensão de, através também de processos disciplinares, condicionar o pensamento e a acção de outros psicólogos, o que só pode justificar-se, porventura, por alguma não diagnosticada “patologia psicossocial”.
Causa-me estupefacção observar como uma bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, Ana Paula Martins, saltita da dita Ordem para um cargo de destaque de uma farmacêutica com um espantoso lobby na pandemia (leia-se Gilead, com o seu remdesivir) e a seguir, pouco tempo depois, para a presidência do Conselho de Administração do mais importante centro hospitalar e universitário do país.
Causa-me pasmo – ou vergonha alheia, talvez mais – ter visto a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, emparceirar num videoclip do cançonetista-deputado Luís Gomez (com Z) que tem o lindo refrão: Leva-me contigo meu amor / Leva-me contigo / Não deixes que morra o nosso amor / Leva-me contigo / Leva-me contigo coração / Leva-me contigo / Não deixes que morra de dor / Leva-me contigo.
E causa-me agora tudo isto – estupor, assombro, estupefacção e pasmo (mas neste caso pela desavergonha) – ver a bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados, Paula Franco, defender que se os restaurantes podem agora comprar produtos a IVA zero (0%), então devem vender mais barato.
Segundo declarações de Paula Franco à Rádio Renascença, “se conseguimos comprar produtos a um preço mais barato isso terá efeito no preço final e pode-se baixar o preço final, neste caso da refeição confeccionada, porque os bens que lhe deram origem foram adquiridos a preços mais baixos.” E, com isto, diz que a decisão de os restaurantes não baixarem os preços após a decisão do Governo é “uma questão de vontade ou de ajustamento”, pois “a verdade é que compraram os bens por um preço ligeiramente inferior e podiam reduzir o seu preço final, se assim o entenderem”.
Isto é verdadeiramente incrível saído da boca de uma bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados, porque nem num candidato a escriturário de vão-de-escada seria tal admissível.
Que se anda a passar com os bastonários deste país? Que bicho lhes anda a morder?
Mas vamos ao IVA – ou, melhor dizendo Imposto sobre o Valor Acrescentado, até porque a denominação o auto-explica.
Um dos grandes dramas dos portugueses – e era também um drama para mim, antes de uma formação tardia em Economia e Gestão – é a sua baixa literacia financeira, razão principal não apenas para más escolhas individuais ao longo vida – tanto em decisões como em argumentação em negociações –, mas também pela incapacidade de monitorizar e exigir melhor aplicação dos dinheiros públicos.
E, por isso, a esmagadora maioria dos portugueses, depois destas palavras da bastonária da Ordem dos Contabilistas, vão pôr acriticamente o odioso sobre os donos dos restaurantes. São eles os maus por os preços não baixarem; não é da inflação para a qual o Governo muito contribuiu, e muito está a beneficiar com o enchimento dos cofres da Fazenda Pública à custa do empobrecimento real dos portugueses, a quem dá, depois, umas migalhas, enquanto faz alarde de um papel de (hipócrita) benemérito.
De facto, o IVA é um imposto neutro aplicado a bens ou serviços, em que todos os intervenientes são sujeitos passivos, excepto o consumidor final. Significa isto que os sujeitos passivos recuperam o IVA dos bens que adquirem para o seu negócio, uma vez que deduzem esse montante ao IVA que têm depois de pagar ao Estado quando vendem os seus produtos e serviços aos seus clientes.
Ou seja, imaginemos que um restaurante para servir cada refeição de lombo ao preço de 22,60 euros (20,00 euros + 2,60 euros de IVA), vai ao talho comprar a carne que lhe custava, antes da decisão do Governo de aplicar IVA zero a diversos produtos, 10,60 euros (10,00 euros + 0,60 euros de IVA). Agora, pagará 10,00 euros (10,00 euros + 0,00 euros de IVA). Ou seja, o dono do restaurante poupa 0,60 euros.
Mas isso é uma poupança aparente. De facto, tem ele margem para repercutir, só por essa redução na factura do talho, qualquer valor no preço que aplica na refeição do seu cliente?
Não, por aí jamais. Porque, na verdade, ao fim do mês (ou trimestre), quando for “fazer contas com o Estado” no que toca ao IVA, o proprietário do restaurante terá de entregar agora a totalidade dos 2,60 euros deste imposto que cobrou ao seu cliente, uma vez que, obviamente, não tem qualquer montante a deduzir do IVA zero da carne que comprou no talho.
Antes do IVA zero, o proprietário do restaurante entregaria ao Estado “apenas” 2,00 euros, uma vez que deduziria os 0,60 euros de IVA que lhe tinham sido já cobrados pelo talho. E o talho, obviamente, tinha então a obrigação de entregar os 0,60 euros pagos pelo proprietário do restaurante quando lhe comprou a carne.
Dito de outra forma, é igual ao litro, para um restaurante a existência do IVA zero nos produtos que adquire para a confecção dos alimentos. Não há nem vantagens nem desvantagens, sobretudo se a entrega das declarações de IVA for mensal.
Mesmo com entrega de declaração trimestral, a única vantagem seria muito relativo e em termos de tesouraria, e apenas se mostraria economicamente relevante (em valores que se vissem) se os juros estivessem muito mais elevados e houvesse um grande volume de mercadorias envolvidas (algo que apenas sucede, por exemplo, nos supermercados).
Por tudo isto, as palavras da bastonária da Ordem dos Contabilistas são, além de um disparate, de uma enorme gravidade pela imagem que dá do topo desta profissão: ou ela sabe que aquilo que transmitiu é falso e esteve a ludibriar-nos (com fins inconfessáveis); ou então pensa que aquilo que transmitiu é verdadeiro e nem sequer deveria ter passado na cadeira de Contabilidade Geral I.