Cada sociedade apega-se aos seus símbolos, aos seus totens, para os impor como referências, como modelos. Portugal tem, desde 1974, o seu totem: o 25 de Abril.
Não haja mal-entendidos. A Revolução dos Cravos tem, no contexto histórico de um país quase milenar, uma relevância indesmentível. Talvez equiparável apenas à própria fundação de Portugal como nação no século XII, à recuperação da independência em 1640, à Revolução Liberal de 1820 ou à implantação da República em 1910.
Porém, sem margem de dúvida, para as actuais gerações, e sobretudo para grande parte da elite política, a Revolução dos Cravos constituiu ainda mais do que uma referência histórica. Foi uma mudança drástica do quotidiano, começando pela afirmação de uma democracia plena que, além do direito de voto, trouxe liberdade de expressão, de associação, de intervenção cívica, criando-se também, num contexto europeu e mundial distinto – social, tecnológico, político e geoestratégico –, possibilidade de desenvolvimento de acordo com o primado dos direitos e garantias (e também deveres) individuais.
Ou seja, a Revolução dos Cravos foi a “cozinha” que os capitães de Abril nos forneceram para cozinharmos uma democracia ao nosso bel-prazer.
Ora, entretanto, passaram já 49 anos, para o ano estamos no meio centenário. Mais do que meia vida. Hoje, os tempos anteriores ao 25 de Abril de 1974 são somente História, literalmente História, para mais de metade da actual população portuguesa. A vida no passado – leia-se, durante o Estado Novo – “interessa-lhes” tanto como à minha geração a II Guerra Mundial, ou à geração dos meus pais a I Guerra Mundial ou mesmo a implantação da República ou os estertores da Monarquia portuguesa.
Explico-me melhor. O “interesse” deve existir – somos o fluxo dos acontecimentos do passado. Um jovem de 30 anos ou menos deve saber como era o país antes de 1974 para que a sua geração não permita um retrocesso civilizacional. A minha geração deve saber o que foi a II Guerra Mundial para que se evite uma III Guerra Mundial. Todos nós deveríamos saber como se vivia nos tempos do feudalismo, antes mesmo desse período, durante a Inquisição, nas nossas antepassadas sociedades misóginas, esclavagistas, racistas, homofóbicas, segregacionistas, opressoras.
Mas esse “interesse” é para saber de onde viemos e para onde não queremos regressar; não deve servir para comparar, para servir como bode expiatório dos nossos falhanços, ou para “revisitarmos” esse passado cada vez mais longínquo para exorcizar os nossos fracassos. Olhar o passado é uma referência, mas os olhos e as nossas acções devem estar focados no futuro e na ementa que queremos servir.
As comparações entre períodos cronológicos são, aliás, muito falaciosas. E somos sempre péssimos avaliadores dos nossos antepassados. Para o bem e para o mal. É-nos fácil, e confesso que confortável, apresentarmo-nos sempre melhores do que eles, esquecendo que eles, tal como nós agora, foram frutos dos seus tempos. Do seu passado e das circunstâncias.
Há três séculos, um português branco com posses seria, quase de certeza, machista, racista, fanático religioso (apoiante da Inquisição), defensor da pena de morte e possuiria naturalmente escravos ou serviçais que trataria sem respeito algum.
Há seis décadas, a maioria da sociedade portuguesa aceitava, por medo ou resignação, o Estado Novo como uma inevitabilidade.
Mas as sociedades, felizmente, evoluem. Sempre evoluíram, mesmo quando houve alguns retrocessos. E evoluíram não apenas porque houve homens e mulheres que criaram rupturas sociais – ou mesmo revoluções, como a dos Cravos de 1974 –, mas muito mais pelo sentimento comum da sociedade para aproveitar a tal “cozinha”, de modo a “confeccionar” metas e objectivos. Para termos uma sociedade mais desenvolvida, mais equilibrada, mais justa e mais equitativa. Aconteceu a Revolução dos Cravos em 1974; sucederia mais ano menos ano; era uma inevitabilidade política (a menos que alguém acredite que, nesta nossa Europa, ainda pudesse subsistir, isolada,uma ditadura à la Salazar em pleno século XXI.
Olhar para o futuro, com o retrovisor no passado, deve ser aquilo que nos tem de nortear o presente.
Contudo, aquilo que mais se tem visto nos últimos anos em Portugal – com uma cadência aflitiva – é olhar-se para a democracia como um facto consumado, como uma Conquista de Abril irreversível, revisitando-se ad nauseam o dia 25 de Abril como um totem, onde de cravo ao peito os políticos nos “mostram” os horrores do passado, para que, inebriados e agradecidos, aceitemos o miserável “estado a que chegámos”, parafraseando Salgueiro Maia, ao longo das últimas décadas.
Não me “interessa” já – ou melhor dizendo, não me interessa na perspectiva de muitos – revisitar a Revolução dos Cravos ano após ano com os mesmos discursos, com as mesmas loas às “conquistas”, com a hipócrita idolatria aos heróis da democracia, quando o mais importante é saber o que fizemos com aquilo que nos ofereceram há 49 anos, que caminho soubemos trilhar em cinco décadas.
A nossa avaliação da Revolução do 25 de Abril – ou seja, da democracia em Portugal – não pode continuar focada na comparação com o Estado Novo – deixemos já isso para os historiadores –, mas sim atenta à evolução da geopolítica internacional e aos novos perigos que se avizinham para as nações e para as sociedades, como a perda de soberania perante uma Comissão Europeia não-eleita (e com objectivos obscuros), a ameaça às liberdades individuais (incluindo a propriedade) e colectivas, o aumento da corrupção moral (raiz de todas as outras), a degradação da liberdade de expressão e até de imprensa, por via do oligopólio dos conglomerados tecnológicos e de media promíscuos.
Numa crescente cultura do obscurantismo e da auto-censura (por medo de represálias) – eu sei que o nosso colunista Tiago Franco acenará com o lápiz azul da Censura e com as prisões do Estado Novo, mas é suposto só nos preocuparmos se chegarmos a esse estado, porque até aí está (ainda) tudo bem? –, se quisermos salvar a democracia – e salvar significa manter ou melhorar os seus princípios –, deixemos de visitar o 25 de Abril como se fôssemos a uma romaria ou a uma feira onde os vendedores da banha da cobra nos tentam endrominar. E nós sabemos disso.
Não nos deixemos, por isso, anestesiar pelos saudosistas do 25 de Abril, porque se assim for, em desespero, quando tudo ruir, e vai ruir se assim continuarmos, acabaremos nas mãos de populistas de ideologia duvidosa, que a História, hélas, já nos mostrou ser caminho ainda mais insano.
Como atrás escrevi, a Revolução dos Cravos foi a “cozinha” que os capitães de Abril nos forneceram para cozinharmos uma democracia. Ao que sabe o prato que nos estão a servir neste momento é o que nos deve preocupar mais. Hoje e amanhã. E em todos os amanhãs, mesmo aqueles que não cantam.