ARQUITECTURA DOS SENTIDOS

O silêncio dos inocentes e a urgência sobre margaridas e carvalhos

brown and blue wallpaper

minuto/s restantes


O carvalho é uma árvore (pode ser uma pessoa se escreveres com maiúscula). Tem um género. E tem uma família.

Existem muitas espécies de carvalhos. Muitos indivíduos. Géneros estão também definidos, podem ser vários, mas estão definidos. As famílias também.

(A América do Norte pelos vistos tem muitos carvalhos. É dos locais que mais tem.)

Eu conheço bem o carvalho, é das árvores que mais me pedem em projectos. Muita gente quer viver com carvalhos ou, por vezes, a simples aparência de um.

macro photography of brown plank

É cada vez mais possível imitar a madeira de carvalho (ou outras) em materiais sintéticos. Em teoria, isso protege o ambiente, previne o abate de árvores que demoram muitas décadas a formar corpo e robustez (e altivez).

Na prática, é uma questão de marketing e ponderação. Ponderamos o uso, o custo, a vida que esperamos do objecto, do móvel, da cozinha, do chão, da parede, do tecto, do telhado, da estrutura. Ponderamos ainda a nossa capacidade para cuidar de um material que está vivo (mesmo estando morto). Que não é inerte, que tem temperatura, temperamento, movimento e reage a nós, ao ar, ao sol, ao tempo (sempre o tempo).

“Construía casas que duravam séculos. Polia móveis que serviriam para os bisnetos. A casa familiar recebia-o à nascença e transportava-o até à morte, depois, como um bom navio, de uma margem para a outra, fazia passar, por sua vez, o filho. Mas a habitação deixou de existir! Iam-se embora, sem mesmo saberem porquê!” 

green leaves under blue sky during daytime

Uma margarida é uma flor (pode ser uma pessoa (até uma criança) se escreveres com letra maiúscula).

A margarida é uma planta, tem um género, tem uma família (temos todos).

Na verdade, a flor da margarida é só uma das partes da planta. O capítulo. Numa preciosa composição natural de pétalas, que circunda este capítulo, e que podemos observar, a olho nu, são as marginais. Numa preciosa cristalização, que existe num tempo finito, breve, frágil, inocente.

A margarida e o carvalho estão conectados. Entre eles a terra, o ar, e até ondas electromagnéticas. criam simbioses. A mão que toca o tronco do carvalho pertence a quem irá cheirar a margarida. E a abelha viaja entre tudo, alimentando o mundo.

A margarida não pensa que é margarida. Ela simplesmente é.

(Mestre Caeiro, volta por favor…)

Tanto quanto o carvalho, que se espreguiça, que se enterra, não pensa no que é. Ele simplesmente é.

macro photography of white and yellow daisy flowers

[Interlúdio para uma fábula incompleta]

O patinho feio que se julgava feio, quando na verdade era cisne, não tinha nascido no corpo errado. Só tinha de esperar e crescer para ver que, afinal, só não se estava a conhecer no início da história, como se conheceu no fim.

Enquanto o inocente patinho cresceu, sentiu as dores de crescimento. Mas passou. E ninguém se magoou.

Já o camaleão – infelizmente nascido em cativeiro, o pobre – de olho arregalado (um para cada lado), quando se afastou do ovo de onde saiu correu. E, acometido por confusão e vendo estrelinhas ao bater de cabeça contra o vidro do aquário onde nasceu, julgou de repente, na verdade, ser gatinho.

Até porque, do lado de lá da sua vitrine, através do corredor da loja de animais, uma inocente e fofa ninhada miava enquanto procuravam a mama da mãe. E tanto, tanto o camaleão os invejou, que na sua solidão pensou…

“se eu partir este vidro, poderei ir ter com os gatinhos, e até talvez mamar na mãe deles, que vai ser minha também!”

Estar acordada de noite é viver num mundo às escuras (viva o mundo às escuras!).

Aqui, um carvalho é um carvalho. Uma margarida é uma margarida. Eu sou eu. Tu és tu. Temos géneros, temos famílias, temos lugares no mundo, encaixemos facilmente ou não (quem encaixa facilmente? Caixa, caixa, caixa), com pétalas em falta ou ramos quebrados, somos o que somos.

No mundo às escuras do mundo iluminado acontecem coisas que se vêem tarde, só quando o sol nasce (e quando nasce).

white lighted sconce

E para o leitor valente que se manteve comigo até agora, coloco aqui aquilo que deve procurar ler sobre margaridas e carvalhos. Sobre o que está ou não conectado. Sobre o patinho feio, que desabrocha em cisne num lago, ou sobre o camaleão de aquário, que quer ser adoptado por uma gata:

Projeto de Lei nº 72/XV/1ª (BE) – APROVADO 

Projeto de Lei nº 359/XV/1ª (BE) – APROVADO

Projeto de Lei nº 21/XV/1ª (PAN) – APROVADO

Projeto de Lei nº 209/XV/1ª (L) – APROVADO

Projeto de Lei nº 332/XV/1ª (PS) – APROVADO 

Projeto de Lei nº 699/XV/ª (PAN) – APROVADO

(O direito à separação por sexos em casas de banho foi uma conquista de direitos de trabalhadoras da indústria, o proletariado. Foi uma conquista feminista para mostrar que somos, sim, diferentes desde o berço e acentuando com o crescimento e maturidade, todas as necessidades diferentes. E nenhum grupo deve calcar outro para conseguir os seus direitos. Foi assim em todas as lutas das mulheres. Dos espaços seguros, à autonomia, liberdade e sufrágio, ao desporto, ao combate à exploração do corpo da mulher sob todas a formas. Suposta “esquerda” que abandonou os trabalhadores para serem pasto de vermes nascidos em ovos da páscoa pintados com várias cores. Falhaste-nos. Não te perdoaremos.)

four children standing on dirt during daytime

Margaridas e carvalhos e o silêncio dos inocentes (lembram-se do vilão? O que estava junto ao poço?)

Agora não se constrói para durar uma vida. Nada. Pois isso não traz lucro ao reino dos psicopatas. Eles decidem, eles organizam, eles fazem tudo por ti. Por uma utopia, filho!

São pelos vistos agora precisos falsos carvalhos, plantados em canteiros de margaridas.

Saiam do nosso canteiro. Não toquem nas nossas margaridas.

“Mas, quando se trata de falar do Homem, a linguagem torna-se incómoda. O Homem distingue-se dos homens. Nada de essencial se diz da catedral se apenas se falar das pedras. Nada de essencial se diz acerca do Homem se o procurarmos definir pelas qualidades de homem. O Humanismo orientou-se, portanto, numa direcção antecipadamente obstruída.”

Mariana Santos Martins é arquitecta


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