Independência da imprensa e de ONG colocada em causa

#TwitterFiles: Luta contra a desinformação ou cartel de promiscuidades?

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por Maria Afonso Peixoto // Abril 28, 2023


Categoria: Imprensa

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Em conversa recente com um jornalista da BBC, Elon Musk já deixara em aberto mais revelações sobre as promiscuidades e atitudes censórias praticadas no passado pelo Twitter e outras redes sociais. Anteontem, numa nova série de documentos escrutinados por jornalistas independentes, reforçam-se as provas da “colaboração”, mesmo antes da pandemia, entre Governo norte-americano, serviços de inteligência, académicos, organizações não-governamentais e jornalistas em prol do combate à “desinformação”. Ou em prol da censura, já não se sabe bem.


“Estilo cartel” – são estes os termos crus e duros usados por Andrew Lowenthal, antigo director executivo da EngageMedia e gestor da newsletter NetworkAffects, para caracterizar a forma como grupos de interesses, lobbys e comunicação social têm vindo a funcionar nos últimos anos.

Em nova sessão dos #Twitter Files, divulgados anteontem – e que desde Dezembro têm revelado, com a “autorização” de Elon Musk, os procedimentos anteriores desta rede social –, Andrew Lowenthal conta como se desenvolveram diversas iniciativas que redundaram em situações de promiscuidade entre entidades governamentais, serviços de inteligência, cientistas, organizações não-governamentais e jornalistas.

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“Numa democracia funcional existe uma tensão dinâmica entre o Governo, organizações da sociedade civil, comunicação social e indústria, em direcção aos seus próprios interesses, na teoria garantindo entre si uma conduta honesta. Nos #Twitter Files, vemo-los todos a trabalhar em conjunto, estilo cartel”, sintetiza Lowenthal, destacando que as promiscuidades surgiram ainda antes da pandemia.

Por exemplo, numa conferência à porta fechada em 2017, organizada pelo National Democratic Institute (NDI) e a Universidade de Stanford para discutir o “desafio global da desinformação digital” foram convidados “líderes de opinião” de empresas tecnológicas, organizações filantrópicas, entidades políticas e jornalistas de topo do Washington Post, The New York Times, Atlantic e NBC. Neste tipo de “proto-workshops de censura”, como Lowenthal os apelida, os jornalistas eram vistos como parceiros, como “participantes, e não adversários”.

Andrew Lowenthal destaca que os documentos do Twitter confirmam, cada vez mais e de forma inegável, que “as companhias tecnológicas colabora[ra]m entre si e com o Estado”, criando e gerindo um sistema de “partilha multilateral de informação”, chegando a reunir frequentemente com o FBI, o Pentágono, o Departamento de Segurança Interna e até com membros da Câmara dos Representantes e do Senado norte-americano. As comunicações internas do Twitter também sugerem, inclusivamente, “um elevado acesso a dados por parte das Forças Armadas”.

Andrew Lowenthal, ao centro, responsável pela divulgação de nova série de documentos dos #Twitter Files.

Além disso, vários membros do Departamento de Segurança Interna norte-americano vieram mesmo trabalhar no Twitter e no Virality Project, um projeto da Universidade de Stanford para combater a desinformação. O Virality Project teve como principal parceiro a Graphika, uma empresa de análise de media social, muito activa na detecção de contas suspeitas de desinformação e de influências em perspectivas não oficiais.

Ora, segundo os novos Twitter Files, “a Graphika recebe dinheiro do Pentágono, da Marinha e da Força Aérea, enquanto apoia, em simultâneo, organizações de direitos humanos como a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch”. Ou seja, há uma porta giratória “interminável” entre a academia, o Governo norte-americano, organizações não-governamentais e as grandes tecnológicas.

Lowenthal mostra também os promíscuos fluxos financeiros desta luta contra a desinformação encabeçada pelo Governo norte-americano e as plataformas tecnológicas, exemplificando com o contrato de 979 milhões de dólares entre o Departamento da Defesa e a Pentaron, uma empresa privada de segurança e tecnologia, para “combater desinformação especificamente originada por adversários dos Estados Unidos”.

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Mas também houve investidores privados e magnatas envolvidos. Foi o caso de Craig Newmark, o multimilionário que criou a conhecida Craigslist, e que terá desembolsado mais de 200 milhões de dólares no financiamento de projetos jornalísticos e académicos para vencer a “guerra da informação”.

Nem mesmo as Nações Unidas ficam de fora desta enorme teia de entidades poderosas que combatem a desinformação suportando a imprensa, de forma directa e indirecta. Por exemplo, a Public Good Projects (PGP), uma fundação sem fins lucrativos, que colaborou com o Twitter para conter a desinformação sobre a covid-19, também levou a cabo “iniciativas para fomentar a procura de vacinas”, tendo criado o Vaccination Demand Observatory em articulação com a UNICEF e o Yale Institute for Global Health.

A pandemia da covid-19 aprofundou estas relações sem fronteiras entre entidades governamentais e não-governamentais, incluindo a imprensa. Nos e-mails internos do Twitter agora divulgados por Lowenthal, comunica-se, por exemplo, a lista dos principais grupos, canais e contas que formam uma alegada “Indústria de Anti-vacinas Online”, e refere-se que os seguidores destas páginas ultrapassaram o patamar dos 58 milhões de contas durante a pandemia.

Em particular, salienta-se como foram identificado os “Desinformation Dozen”, os 12 activistas alegadamente “antivacinas”, entre os quais se destacava Robert Kennedy Jr. actual pré-candidato democrata às eleições norte-americanas de 2024 e um dos mais destacados (e outrora respeitáveis) defensores das políticas de combate às alterações climáticas.  Houve mesmo responsáveis governamentais norte-americanos que pediram então ao Twitter que banisse estes “Desinformation Dozen”.

De respeitável defensor de causas ambientais, Robert Kennedy Jr. passou a proscrito pela imprensa mainstream pelas suas posições críticas às vacinas contra a covid-19.

O antisemitismo foi outra preocupação no mundo online, mas onde se identificaram interesses com algum grau de promiscuidade. Por exemplo, o Center for Countering Digital Hate (CCDH) e a Anti-Defamation League (ADL) foram duas entidades supostamente independentes que mais acusaram as principais tecnológicas de não tomar medidas contra o “discurso de ódio e conteúdos antisemitas”, mas o “financiamento misterioso [do CCDH] nunca preocupou os executivos do Twitter nem os repórteres que transmitiram as suas exigências”, destaca Lowenthal.

No final da divulgação destes documentos dos denominados Twitter Files, e perante a promiscuidade entre entidades supostamente independentes dinamizadas pela sociedade civil, entidades governamentais e imprensa, Andrew Lowenthal acaba a fazer um apelo. “Vamos colocar o ‘não-governamental’ novamente em ‘organização não-governamental’ e retirar o financiamento à indústria ‘anti-desinformação”.

Leia aqui toda a cobertura dos “Twitter Files” feita pelo PÁGINA UM.

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