Os autorretratos de Gaugin, que estão desde anteontem expostos no Museu de Arte de São Paulo (MASP), são uma sofisticação daquilo que hoje são as selfies, a exposição instagram. O eu narcísico ocupa todo o espaço da nossa existência. O eu dos meus direitos é intrusivo e ameaçador sobre os outros.
A cultura do outro é humilde, preocupada, tem o seu preceito em não incomodar o próximo, não causar embaraço ou constrangimento. Contrariamente a esta ideia do outro como circunstância, onde nos encontramos, há o eu magnífico, o eu que se projecta na envolvência, que se alicerça sobre a existência alheia.
No restaurante eleva-se o som do telemóvel, não importando se incomoda. Na estrada aparca-se onde dá jeito, não merecendo cuidado se atrapalha ou dificulta. Na loja tira-se tudo do lugar, desarruma-se sem pudor. Em casa faz-se ruído após as horas de repouso dos outros. No autocarro, ou na praia, ou no passadiço, coloca-se música a inebriar o sossego dos outros, a violar o direito de todos ao silêncio.
Não importa se incomoda desde que eu me exiba ou fique bem. Aliás, que importa se incomoda? O centro dos outros sou eu, e eu sou já a circunstância.
Os novos boçais nascidos desta cultura narcísica são pouco sensíveis a perceber o lugar dos outros, porque neles os outros são likes de redes sociais, são frases nas app, mas não são verdadeiramente as pessoas com quem convivem.
Olhar e perceber nos olhos que desgostamos, entender a insatisfação do outro, e ajustar o comportamento, corrigir o modo, está a perder o espaço. Abrir a porta a alguém é um gesto antigo que tem componentes de acção/ reacção formatadas.
Deves estender a mão para segurar a porta que te abrem. Não deves passar sem agradecer ou mostrar simpatia. Quem te abre a porta não é porteiro, é delicado e cordial. Mas as bestas narcísicas passam sobranceiras.
A nova esquerda é a dos eus conturbados, a dos narcísicos direitos. Por isso, a nova esquerda luta mais pelos indivíduos, pela agenda dos direitos, pela afirmação das diferenças, pela configuração legislativa da repressão dos lugares-comuns, o apagamento das regras educacionais, a ofuscação da tradição apostólica romana num combate do eu contra os outros.
Mas os outros serão o espaço social onde gravitará o eu, porque a “inibição de contacto”, o reconhecimento dos outros é a garantia da pertença ao tecido social humano. Não há tecidos de uma célula só. Não há existências de muitos sem conturbação e discussão.
O espaço da esquerda tem de continuar a ser a dos direitos colectivos, a de garantir soluções transversais para os direitos dos trabalhadores e dos desfavorecidos.
O eu e os outros trespassa a identidade dos políticos de hoje.
Diogo Cabrita é médico
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