Após duas derrotas, Ministério da Saúde classifica 11 vezes pedido do PÁGINA UM como "manifestamente abusivo"

Enquanto o Expresso noticia que não há dados… há uma base de dados cujo acesso está nas mãos do Supremo Tribunal Administrativo

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por Pedro Almeida Vieira // Maio 11, 2023


Categoria: Exame

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É falso que não haja dados sobre enfartes ou sobre outras quaisquer doenças que afectam os portugueses, e que se mostra impossível saber a evolução. Mesmo se essa “informação” é garantida pelo Expresso, pois trata-se de misinformation. Na verdade, não só há informação detalhada sobre enfartes como de todas as outras doenças na Base de Dados dos Grupos Homogéneos de Diagnóstico, que o Ministério da Saúde está a lutar até ao Supremo Tribunal Administrativo para não permitir o acesso ao PÁGINA UM. Após duas decisões desfavoráveis, no Tribunal Administrativo de Lisboa, em Janeiro passado, e no Tribunal Central Administrativo Sul, o Ministério de Manuel Pizarro luta agora convencer os desembargadores do Supremo Tribunal Administrativo, a derradeira instância, de que o pedido do PÁGINA UM é “manifestamente abusivo”. Repete 11 vezes este argumento para contestar o direito constitucional à informação de um jornal independente.

Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO.


Uma notícia da última edição de Abril deste ano do semanário Expresso era taxativa: “Portugal sem registo do número de enfartes”. No corpo da notícia, Hélder Pereira, presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, explicava que “em Portugal, o registo de casos de enfarte no Registo Nacional de Síndromes Coronários Agudos feito pelos hospitais é voluntário. “Nem metade dos enfartes que acontecem estão registados”, sublinhava.

É assim?

Não, não é verdade. Sendo certo que este registo, gerido pela SPC, peca por defeito, por não ser obrigatório, existe um registo oficial, este sim obrigatório, onde constam todos os doentes admitidos nos hospitais públicos quer sejam por enfartes quer por outros problemas de doenças coronárias. E, enfim, de todas as doenças, acrescido da evolução ao longo do internamento.

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Chama-se Base de Dados dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos, servindo também como forma de cálculo para financiamento dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde. Os dados, que são anonimizados, permitiriam facilmente – cruzando ainda com as causas da morte do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) – contabilizar ao dia, à semana, ao mês e ao ano a totalidade dos enfartes, e aliás de toda e qualquer doença e afecção.

A quantidade e qualidade da informação presente na Base de Dados dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos é, porém, simultaneamente de enorme utilidade para uma adequada política de saúde pública mas sensíveis, se tornados públicos, para um Governo, porque se consegue detalhar, ao pormenor, o desempenho de cada hospital do Serviço Nacional de Saúde. Permite, ao pormenor, detectar evoluções anómalas de determinadas doenças. Permite, ao pormenor, encontrar indicadores de eventuais negligências médicas ou deficientes desempenhos. Permite saber muito.

E é esse “permite saber muito” que faz com que esteja na “mira” do PÁGINA UM há quase um ano, e faz com que a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), a entidade responsável pela gestão da Base de Dados dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos, lute encarniçadamente para evitar o seu acesso integral e livre.

Expresso noticiou que não há registos do número de enfartes. Não só dos enfartes como de todas as outras doenças na Base de Dados dos Grupos Homogéneos de Diagnóstico, que o Ministério da Saúde está a lutar até ao Supremo Tribunal Administrativo para não permitir o acesso ao PÁGINA UM.

Mas uma coisa é a vontade política, e a cultura de obscurantismo, e outra a Lei.

A “luta” vai, neste momento, já no Supremo Tribunal Administrativo. Esta semana, o PÁGINA UM teve de contra-alegar no recurso apresentado pela Administração Central do Sistema de Saúde, depois desta entidade tutelada pelo ministro Manuel Pizarro ter tido já duas decisões desfavoráveis. A primeira, em 24 de Novembro do ano passado, através da sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa. A segunda, mais recente, em 23 de Março deste ano, através do acórdão de três desembargadores do Tribunal Central Administrativo Sul.

Mas o Ministério da Saúde não desiste. Nunca desiste nem desistirá da sua cultura de obscurantismo. O chamado “recurso de revisão”, que apresentou através da sociedade de advogados BAS – a mesma que defende o Infarmed a não conceder outra base de dados anonimizada, o Portal RAM (reacções adversas de medicamentos) – é uma peça de antologia, onde se explana a última cartada para convencer a Justiça da bondade de uma entidade que somente quer afastar dos olhos dos cidadãos sobre aquilo que sucede dentro dos hospitais e no interior dos gabinetes das autoridades de saúde.

Neste recurso, entenda-se, está muito em jogo – e a própria Administração Central do Sistema de Saúde não tem papas na língua em assumir: fala até da relevância de uma decisão numa “dimensão social” – uma forma de dizer “dimensão política”, se o Supremo Tribunal Administrativo confirmar a legitimidade do acesso à base de dados.

Victor Herdeiro, presidente da ACSS, quarto a contar da esquerda, durante a sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS em 7 de Julho do ano passado.

Atente-se, por exemplo, a esta passagem crucial no argumentário usado pela sociedade de advogados que defende esta entidade tutelada pelo Ministério da Saúde:

A capacidade de repercussão social da questão que subjaz aos presentes autos é evidente, designadamente pelo facto de, atualmente, ser possível identificar um vasto número de pedidos de acesso a documentação administrativa que contêm, em regra, dados pessoais, especificamente dados pessoais de natureza clínica, não sendo a ACSS a única entidade objeto de pedidos desta natureza, conforme tem vindo a ser objeto do conhecimento público. Ou seja, os contornos da questão a apreciar nos presentes autos indiciam que a solução a adotar poderá servir de bússola para a apreciação de casos análogos, extravasando, por isso, a esfera das partes aqui envolvidas. Deste modo, a questão a apreciar no presente recurso revela uma especial capacidade de repercussão social, termos em que a utilidade da decisão a proferir por este Supremo Tribunal extravasa tanto os limites do caso concreto como as partes envolvidas no litígio, impondo-se, por isso, um crivo mais exigente na solução a alcançar, justificando-se, nesses termos, e também por tais razões, a admissibilidade do presente recurso de revista.”

Por outras palavras: o Ministério da Saúde está preocupado com os outros processos de intimação em curso intentados pelo PÁGINA UM, sobretudo relacionados com bases de dados de saúde, mesmo se estes são anonimizados ou anonimizáveis – ou seja, impossibilitam a identificação de qualquer pessoa.

Brande um argumento político associado ao argumento da protecção da intimidade das pessoas – que está já protegida pela anonimização – para que, com isso, fiquem protegidos pela sindicância do desempenho do Serviço Nacional de Saúde e das políticas de saúde por parte de uma imprensa independente.

Sentença de Novembro de 2022 e Acórdão de Março deste ano concedem legitimidade ao PÁGINA UM a aceder a uma base de dados anonimizada. ACSS argumenta agora basicamente que o pedido é “manifestamente abusivo”.

No argumentário para “sensibilizar” os conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo, a Administração Central do Sistema de Saúde não se cansa de reputar e repetir, por 11 vezes, que o pedido de acesso à base de dados – que é susceptível de anonimação, conforme um despacho assim o admite – é “manifestamente abusivo”.

Por 11 vezes, não vá, pensará o Ministério da Saúde, os conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo estarem desatentos na leitura de algumas das 26 páginas.

Sim, são 11 vezes, a saber:

1 – “Ora, a realização do interesse público que incumbe à Administração Pública e, neste caso, à ACSS nos termos que vêm previstos na sua Lei Orgânica, determina que não deve a Administração executar tarefas que visem satisfazer pedidos manifestamente abusivos e que, em rigor, contendem diretamente com a prossecução das suas efetivas missões e atribuições, conforme sucede in casu.” (pg. 11)

2 – “A questão basilar, neste caso, é, portanto, a seguinte: será razoável e conforme aos princípios gerais da atividade administrativa, concluir que a Administração Pública e, neste caso, a ACSS, deve ser condenada a satisfazer pedidos manifestamente abusivos que, para além de o serem, se afiguram prescindíveis por já terem sido previamente, in totum, satisfeitos? A resposta parece ser, necessária e indubitavelmente, negativa, à luz, uma vez mais, do princípio da proporcionalidade.” (pg. 11)

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3 – “Neste sentido, assume uma inegável relevância social fundamental a delimitação das verdadeiras funções da Administração Pública, sob pena de se admitir, levianamente, que a Administração deve satisfazer todo e qualquer pedido, ainda que manifestamente abusivo e desrazoável, o que não se pode admitir.” (pg. 12)

4 – “A desrazoabilidade da decisão do TCA Sul, inclusive, motivo de espanto da Recorrente, uma vez que, sendo os órgãos jurisdicionais conhecedores diretos do número limitado de meios e da dificuldade inerente à prossecução e concretização das missões e atribuições dos órgãos e entidades que integram a Administração Pública, deles se esperaria um mais adequado juízo acerca da (des)proporcionalidade e (des)razoabilidade de pedidos de acesso a informação que, por se revelarem abusivos e, e[m] rigor, desnecessários, impedem uma eficaz prossecução das aludidas missões e atribuições.” (pg. 13)

5 – “Em suma, tais questões, incidem, fundamentalmente, sobre os seguintes aspetos, manifestamente contrários ao princípio da proporcionalidade: i) o pedido de informação subscrito é manifestamente abusivo, atenta a sua dimensão, bem como a dimensão da anonimização dos dados pessoais que dela constem; ii) o prazo de dez dias concedido à Recorrente para o fornecimento daquela informação com o consequente expurgo dos dados pessoais é manifestamente incompatível com o esforço, os meios e os recursos que aquela tarefa implica; e iii) a informação constante do Portal da Transparência já satisfaz, in totum, a pretensão do aqui Recorrido. Em face do exposto, é cristalina a relevância jurídica e social fundamentais da apreciação do caso dos presentes autos, sendo ainda tal apreciação necessária para uma melhor aplicação do direito, estando, assim, preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade consagrados no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA.” (pg. 15)

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6 – “Mais acrescenta o n.º 3 do artigo 15.º do mesmo diploma que «[a]s entidades não estão obrigadas a satisfazer pedidos que, face ao seu carácter repetitivo e sistemático ou ao número de documentos requeridos, sejam manifestamente abusivos, sem prejuízo do direito de queixa do requerente». Em face do que antecede e da circunstância de consubstanciar um facto notório que a base de dados GDH contém uma vastidão de informação, designadamente atenta a janela temporal desenhada pelo Recorrido, a conclusão de que tal pedido é desproporcional, desrazoável e excessivamente oneroso para a ACSS decorre, em todo o caso, das regras da experiência comum, conforme já referido em sede de análise da admissibilidade do presente recurso.” (pg. 18)

7 – “Em síntese, a violação do princípio da proporcionalidade manifesta-se na circunstância de não ser razoável condenar a Recorrente na satisfação de um pedido que é, por natureza, manifestamente abusivo, bem como pela circunstância de, mesmo que assim não se entenda, se ter condenado a ACSS a satisfazer tal pedido no prazo reduzido de dez dias e, ainda, na circunstância de tal pedido ter sido já cabalmente satisfeito por via da publicação dos dados no supramencionado Portal.” (pg. 20)

8 – “Determina o princípio da proporcionalidade que não deve, sem mais, ser admitido o sacrifício desproporcionado de interesses próprios da Administração. É, no entanto, precisamente isso que se verifica in casu, uma vez que a decisão do douto Tribunal a quo se revela manifestamente desproporcional ao considerar procedente um pedido de informação manifestamente abusivo, concedendo, nesse quadro, um reduzido prazo de dez dias para a sua satisfação, não atendendo, contudo, ao facto de tal pedido já estar integralmente satisfeito atenta a informação publicamente disponível no Portal da Transparência do SNS.” (pg. 22)

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9 – “Nesta ótica, o presente recurso assume um papel fundamental na resposta à questão de saber qual é, afinal, o papel da Administração Pública (em concreto, da ACSS) e, nesse caso, se lhe deve ser exigida a satisfação de pedidos manifestamente abusivos, desproporcionais e desrazoáveis, em detrimento do desempenho de todas as funções que efetivamente lhe incumbem nos termos da lei.” (pg. 23)

10 – “Dito isto, refira-se que a violação do princípio da proporcionalidade pelo TCA Sul consubstancia-se, em síntese, no facto de o pedido formulado pelo Recorrido ser manifestamente abusivo atenta a dimensão da informação requerida, bem como pela circunstância de o prazo fixado pelo tribunal para a satisfação de tal pedido ser absolutamente insuficiente e incompatível com as circunstâncias do caso concreto, e, ainda, pelo facto de não se compreender em que medida pode a Recorrente ser condenada a satisfazer um pedido já satisfeito, conforme fica demonstrado por via da consulta e análise dos dados publicados no Portal da Transparência do SNS.” (pg. 24)

11 – “Atentas as regras da experiência comum e o facto de a excessiva onerosidade inerente ao pedido do Recorrido consubstanciar um facto notório, mesmo que tal não tivesse sido alegado ou o tivesse sido imperfeitamente, sempre se alcançaria a conclusão de que a anonimização do vasto número de dados aqui em causa representa uma violação do princípio da proporcionalidade, consubstanciando um pedido manifestamente abusivo e, por isso, inaceitável.” (pg. 25)

E, no entanto, o PÁGINA UM somente está a fazer jornalismo num país que, dentro de meses, comemora os 50 anos de Democracia. Tem agora a palavra o Supremo Tribunal Administrativo.


N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 18 processos em curso, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

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