De tempos a tempos, dou por mim em debates sobre encruzilhadas da vida que me agradam. Aqueles momentos que, tipicamente, nos recordamos anos mais tarde como decisões que se revelaram acertadas. Alguém de quem gosto muito, há dias perguntou-me o que achava de uma pausa na carreira, de um despedimento repentino, de uma paragem nas rotinas diárias, para ir ver o mundo. Ou, como lhe chamam nos países desenvolvidos, um gap year.
Em Portugal, isto gera discussão e provoca dificuldades. Nos países da Escandinávia, por onde passei metade da vida adulta, é um passo comum na vida. Uma etapa. Há quem o faça trabalhando, há quem o faça no início do percurso académico. Mas não há nada de estranho, em determinado momento da vida, em sair para a estrada e seguir à descoberta.
Quem me conhece, como era o caso do meu interlocutor, sabe que é uma pergunta retórica. Sou um péssimo conselheiro nestas ocasiões, porque para mim, depois das relações entre pessoas, não existe nada mais importante do que viajar.
Soará talvez a algo fútil nos dias que correm e no meio das dificuldades que se conhecem, mas é o que verdadeiramente penso. Poucas coisas na vida são tão importantes como conhecer outros sítios e abrir os olhos para o mundo. Começa aí, a meu ver, o verdadeiro conhecimento da nossa realidade e do papel que temos neste planeta recheado.
Uma das minhas partes preferidas neste debate é o medo de se perder o emprego perfeito. Era essa a grande dúvida de quem comigo falava. “O que vou fazer depois de perder o emprego perfeito?”. Ou seja, o medo de se perder algo que não existe. Existem pessoas perfeitas, que nos completam e cuja existência dá outro sentido à nossa vida. Existem momentos perfeitos que perduram na nossa memória e que emolduramos na galeria dos sorrisos. Não existem empregos perfeitos. Especialmente para a grande maioria que, como nós, trabalha para garantir o seu sustento ou da família.
Existe um contrato, uma troca, um acordo. Força de trabalho por dinheiro, de preferência em quantidade suficiente para aguentar BCEs, Ucrânias e inflações. Não há juras de amor a uma empresa ou lealdade eterna a um empregador. Há profissionalismo e dedicação séria, enquanto o contrato durar. Depois, fecha-se a gaveta e entrega-se essa mesma dedicação e lealdade ao próximo sortudo que connosco fizer um contrato.
Sim, sortudo. Sorte do empregador que encontra um trabalhador dedicado.
Sempre que aparece esta conversa, já lhes perdi a conta, por norma com pessoal na casa dos 30 anos (imagino que seja a primera fase da vida em que pensamos “e agora?”), lembro-me de um rapaz que conheci há 15 anos, na Suécia.
Voltei-o a vê-lo há poucos dias no IKEA, mas só me apercebi quem era uns dias depois. Tínhamos ambos 30 anos e eu ia no meu sexto ou sétimo ano de trabalho. Ele cumpria, naquele dia, o seu primeiro na Engenharia.
Perguntava-me, em surdina, como é que alguém tinha o seu primeiro emprego aos 30 anos, e como é que o mercado absorvia uma pessoa assim. Tinha chegado há pouco tempo de Portugal, eu, e ainda vinha com a cabeça formatada para as sequências impostas da vida: escola, universidade, trabalhar aos 24, casar, ter filhos, criar uma boa barriga aos 30, ser promovido aos 35 e ficar na mesma função até à reforma.
Ainda ecoavam na minha cabeça as palavras daquela senhora de uma empresa de telecomunicacões (julgo que se chamava CBE), que na entrevista me disse: “você já tem 23 anos, o que andou a fazer da vida?”
Para mim, aquele rapaz, a chegar ao “mercado” aos 30 anos, devia ter um problema qualquer. As palas que eu tinha nos olhos não davam para ver mais longe.
Um dia, já com alguma confiança entre nós, ele partilhou a história de vida. Disse-me que tinha trabalhado em bombas de gasolina, com vacas, em supermercados, na apanha da fruta. Pelo meio, tnha dado duas voltas ao Mundo e quando percebeu que a sua paixão era Engenharia, foi estudar e trabalhar na área.
Ao contrário de nós, que escolhemos o resto da vida numa idade em que mal sabemos o que se passa para lá do nosso bairro, ele teve a sorte de nascer numa parte do Mundo onde há tempo para viver e para se escolher o caminho certo. Ninguém ali era velho aos 30 anos e senhora alguma dos Recursos Humanos pensou que ele era um calão.
Ele fez a escolha certa, no tempo apropriado e com a maturidade que lhe permitiu ser um óptimo profissional, pois sabia que aquele era o caminho a seguir. No primeiro dia naquela empresa, o curriculum dele já era bem mais recheado e interessante do que o meu, que andava há sete anos a bater em teclados.
Bem sei que as oportunidades em Portugal não são as mesmas, e o mercado de emprego, absolutamente miserável, não se emociona com descobertas do planeta. Ainda assim, hoje, aos 46 anos, que pena tenho de só ter percebido esta realidade tão tarde e num momento em que a descoberta do Mundo já só podia ser feita aos bocados, em fatias de semanas e sempre com responsabilidades que não se podem adiar ou pausar.
Nascemos para descobrir e viver outras culturas. Não para trabalhar de sol a sol e pagar contas. É por isso que lutas como a dos franceses pela idade da reforma são importantes. Ou a dos professores por salários dignos. Há uma imensidão para lá da nossa rotina diária que exige tempo e dinheiro para ser descoberta. Pelo menos por quem tem essa curiosidade.
Uma das coisas que nunca percebi, perdoar-me-ão, é quem passa uma vida inteira a ir de férias para o mesmo sítio. Seja o Algarve ou outra zona qualquer. Nunca percebi e até fico angustiado quando ouço ou leio “vou para sítio X há 30 anos”. Com um Mundo tão grande, não têm curiosidade de ver mais nada?
O meu sonho é um gap year. Fico feliz quando alguém de quem gosto pensa nisso e quase que me sinto a viver o momento. Vai, vai e vai, é sempre o meu conselho. Se não tiveres um filho ou alguém que depende de ti, vai. Se tiveres um filho e o puderes levar, vai. Se fores casado e a tua mulher alinhar, vai. Se ela não alinhar, esforça-te para a convenceres. Enquanto as pernas mexerem e o espírito se mantiver curioso, vai. Nada, absolutamente nada de mau chega com uma nova viagem.
Um dia chegará o meu Gap Year; pelas minhas contas, pouco depois de completar 50 anos, numa altura em que os miúdos serão adultos e estarão fora de casa a completar o último passo do sistema de ensino. Ou então a trabalhar, como me explicou recentemente o meu filho, com planos para atingir o primeiro milhão aos 18 anos. Tipo Trump, mas sem o empréstimo do pai.
De uma forma ou de outra, com uns bons 25 anos de atraso, esse dia chegará. Provavelmente com os joelhos mais massacrados e as costas menos desejosas de chão irregular. Mas chegará.
Para ti e para vocês, que estão agora na idade do rapaz que trabalhava nas bombas e apanhava morangos, assim que pensarem nisso pela primeira vez, vão. Não esperem pela dúvida. Aquela história da água que não corre duas vezes debaixo da mesma ponte, era mesmo verdade.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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