a deriva dos continentes

Não me diga que não sabia

green bearded dragon

por Clara Pinto Correia // Maio 16, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

É provável que este todo contenha um significado muito difícil de descodificar, porque Deus trabalha de formas misteriosas.

Stephen Jay Gould

QUESTIONING THE MILLENNIUM


A partir de Fevereiro de 1989, quando Salman Rushdie se refugiou em diversos esconderijos londrinos depois do Ayatollah Khomeini o ter condenado à morte em todo o universo muçulmano[1] pelas infâmias e ofensas contidas no seu livro VERSÍCULOS SATÂNICOS[2], é evidente que um grande número de ingleses bem-intencionados se dispuseram a correr riscos muito sérios para lhe darem, no mínimo, algum apoio moral. Aquele que eu nunca hei-de esquecer foi o do correspondente do THE NEW YORKER que o levou ao cinema numa matiné. Infelizmente, as escolhas do multiplex não eram muitas nem grande coisa, de maneira que acabaram os dois sentados na sala que passava o filme QUATRO CASAMENTOS E UM FUNERAL. Ao fim de quinze minutos, era absolutamente incontornável que estavam rodeados por uma multidão deleitada, constituída por pessoas de todas as idades e feitios que não tinham precisado assim de tanto tempo como isso para se apaixonarem perdidamente pela película – fenómeno que muito indignou o correspondente do THE NEW YORKER, que seleccionara aquele filme convencido pela crítica da sua própria revista que se trataria de um trabalho interessante, no mínimo. “Mas porquê? Já reparou? Como é que é possível que esteja toda a gente a gostar tanto desta chachada?”, sussurrou, furioso, para o seu amigo perseguido e anónimo.

Rushdie nem moveu um músculo da cara.

“Porque as pessoas têm mau gosto,” respondeu, tranquilamente, ao seu benfeitor. “Ah, por favor, vamos lá – não me diga que não sabia!”


Esta historinha de perfeito tiro ao alvo vem, ainda, a propósito do tal já mencionado comediante português sem escrúpulos sobre quem nunca ninguém lançou uma fatwa[3] mas que bem a merecia. De cada vez que alguém mete ao bolso rios de dinheiro para mentir aos portugueses[4], que são tão crédulos como qualquer outro povo ocidental e portanto acreditam mesmo na publicidade[5], está a aceitar comprometer-se com um crime tão vil que merece certamente um castigo duro, mesmo que não seja uma pena de morte.

CPC em 1998, completamente a fazer-se ao mau gosto
Ai isso é assim? Então depois não te queixes, minha filha.

Quando falo de casos como este costumo nunca mencionar os nomes das pessoas, nem da “chachada” falante a que pertenciam quando disseram a sua frase ofensiva, nem da localização geográfica em que esse grupo reunia. Faço isto por uma razão muito simples: o que me interessa é o caso em que si, e não a distracção dos leitores com o nome próprio dos protagonistas, que não é, de todo, o que interessa para o que a história nos oferece de mais revoltante, de mais louvável, ou passível de mais perturbação. Desta vez, no entanto, vários colegas do PÁGINA UM insistiram para que eu falasse do comediante por nome e apelido[6], desmistificando a suposta piada da criatura, e rematando, com curiosa frequência,

Detesto esse gajo!

É boa, também eu. Mas tu detestas o gajo porquê?

Porque ele não tem qualquer espécie de graça! Só diz piadas destinadas a chincalhar outras pessoas. Isso nem sequer é humor, é mau gosto puro e simples!

Pois é. E então, como nos ensinou Salman Rushdie, batam no peito e reconheçam as vossas culpas: as piadas deste senhor correm-lhe bem, e as pessoas acreditam nele tal como acreditam na publicidade, porque as pessoas têm mau gosto. A culpa não é dele: é das vastas maiorias que lhe acham graça. E, enquanto não sairmos deste atoleiro, bem podemos dizer uns aos outros que “detestamos o gajo”, bem podemos lançar-lhe fatwas intelectuais[7], que nada sairá do seu lugar. O nosso verdadeiro desafio é este: como é que podemos ajudar na cruzada para que que as pessoas não tenham mau gosto – e, por decorrência, não acreditem na publicidade?

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] Os editores do livro também foram condenados por ajudarem a difundir uma mensagem herética, mas com muito menos alarde. Se um castigo deste tipo, que se mantém em vigor nos nossos dias, é ou não um exemplo de fatwa, bom – isso tem sido debatido de forma muito aguerrida pelos académicos do islamismo desde 1989, e continua a sê-lo.

[2] A propósito, vocês leram o livro? É que eu, por acaso, li – naqueles seis meses que decorreram ainda antes de a obra se transformar numa moda que era um exemplo de coragem depois da condenação à morte do seu autor. Confesso que foi uma desilusão, levada até ao fim só mesmo por teimosia, e talvez por qualquer esperança pateta de que a luz surgiria precisaria no fundo do túnel. Quer dizer, se é pela sua literatura que um homem vai ser universalmente condenado à morte, então que seja por um trabalho verdadeiramente grandioso. Não é minimamente o caso. Perturbantes, estranhos, dignos de serem lidos e relidos, só mesmo os versículos propriamente ditos. Mas esses, ao que nos dizem, são da autoria do Profeta. Tudo o resto fica muito aquém. E é pena.

[3] Nem todas as fatwas são penas de morte, mas todas são penas severas.

[4] E aqui a mentira era extremamente grave, porque se destinava a garantir aos portugueses que não havia que ter medo de manter contas a prazo no BES, que afinal veio a falir uns quantos meses mais tarde. Milhares de portugueses ficaram depauperados de um dia para o outro sem a menor compaixão nem do Estado nem do Banco de Portugal. E o director desta trama infeliz, que entretanto tinha desviado centenas de milhares de euros que não lhe pertenciam para uma conta em Singapura onde ninguém pode tocar-lhes, continuou a passear-se por aí, protegido por dois guarda-costas com todo o ar de terem acabado de sair das fileiras da MOSSAD, e com um ar que era de tudo menos de compaixão. 

[5] Porque é que as pessoas acreditam na publicidade? Bom, isso é tema para psicanalistas e eu remeto-me à minha insignificância. Mas nunca hei-de esquecer o fascínio com que os portugueses acompanhavam as aventuras da vida de uma tal Raquel, uma jovem e bonita grande profissional com marido e filhos, que conseguia resolver todos os seus problemas quando o país sufocava nas garras da troika porque fazia todas as suas compras no Continente. Isto é pérfido. Muito pérfido. O Continente sabe, tal como sabia quem quer que fosse que pagou ao comediante para dizer num falso debate televisivo que tinha uma conta a prazo no BES e estava descansado da vida. Se fôssemos inspeccionar o caso agora, provavelmente nem nunca teve lá conta nenhuma.

[6] Depois de muita reflexão, não, não, e não! Tenho um estilo, e vou respeitá-lo.

[7] Bastava nenhuma editora aceitar os livros dele, com aquelas fotos tipo Adam Sandler na capa. Já era um favor enorme.

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