ARQUITECTURA DOS SENTIDOS

Afinal as torres são de porcelana

brown and blue wallpaper

por Mariana Santos Martins // Maio 17, 2023


Categoria: Opinião

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No cimo da torre caminham monstros entre dois mundos. Monstros que se diriam marinhos, viscosos e pesados, que estremecem os pisos inferiores em cada salto aéreo, planando sem dificuldade pela construção de mitos cá em baixo, enquanto tocam flauta.

Mitos cá em baixo e coletes fluorescentes que rasgam o asfalto e respiram escapes a caminho de si próprios (precisamos de caminhar para algum lado).

Postes de alta tensão e antenas multiplicam-se e atravessam as rotas (fecha os olhos, não olhes para cima e não as vês, baixa a cabeça e olha para o ecrã).

black metal frame with glass roof

Enquanto isso os deuses incumbem sacerdotes de rasgar os peitos de discípulos e oferecer corações em sacrifício, ainda a pulsar (somos muitos, somos demais, salvem os gatinhos, esterilizem-nos e não os deixem ir para a varanda).

Se os pensamentos já são fugidios e ainda, para além de os tentarmos apanhar, temos que os ordenar para encontrar sentido nesta história, a quem é que afinal sobra tempo para transmutar a torre dos monstros em castelo de porcelana (rachou, ali já rachou).

Vejam bem o que sobra dos esqueletos de edifícios feitos por estes monstros. Nem ruir sabem com dignidade (a quem sobra tempo?)

Mas o tempo acelerou tanto que só nos sobra caminhar por entre os escapes rumo a uma promessa.

time lapse photography of tunnel

E que dor que é. Porque o facto é que somos bichos e precisamos de tempo e as nossas mentes precisam de o ver (o tempo) para o transmutar em porcelana.

Não, não pode ser só nascer, entrar na fotocopiadora e sair a preto e branco algures na vertigem da maturidade, produzir mais dejectos e entretanto morrer algures no limiar da nossa inutilidade produtiva. Do nosso abrandar inexorável.

Há mais em nós. Há mais em ti.

Por isso se marcava o tempo, a cada ano, a cada degrau da torre. Para chegarmos lá acima e limparmos o caminho de monstros marinhos e viscosos que se atreveram a voar e ensombrar os nossos dias.

A fartura nunca educou ninguém, mas começaram a imprimir e a copiar folhas vazias de alma, as fichinhas, para supostamente ensinar os miúdos mais depressa, como quem carregava no botão da impressora e lá saía mais um garoto pronto a consumir (pronto a produzir).

girl using VR goggles

Deixamos de criar guerreiros e guerreiras, passamos a engordar a tribo e a cortar o cabelo de formigas submissas às ordens de tiranos que nunca tiraram uma vida (e como poderiam?) e que não sabem o valor de uma vida (de uma morte) e que não têm assombrações (e assombros) que os guiem enquanto guiam homens, de cabelo já cortado, rapado pela raiz, sem mais ritual de transição do que o da humilhação e subjugação.

Houve outrora pavões orgulhosos que encheram o peito para conquistar um lugar, agora todos depenados em aviários, confinados a caixas todas iguais com vernizes de cores diferentes, a pintarem as unhas para pôr ovos que vão ser chacinados, devorados, desperdiçados.

Mariana Santos Martins é arquitecta


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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