No cimo da torre caminham monstros entre dois mundos. Monstros que se diriam marinhos, viscosos e pesados, que estremecem os pisos inferiores em cada salto aéreo, planando sem dificuldade pela construção de mitos cá em baixo, enquanto tocam flauta.
Mitos cá em baixo e coletes fluorescentes que rasgam o asfalto e respiram escapes a caminho de si próprios (precisamos de caminhar para algum lado).
Postes de alta tensão e antenas multiplicam-se e atravessam as rotas (fecha os olhos, não olhes para cima e não as vês, baixa a cabeça e olha para o ecrã).
Enquanto isso os deuses incumbem sacerdotes de rasgar os peitos de discípulos e oferecer corações em sacrifício, ainda a pulsar (somos muitos, somos demais, salvem os gatinhos, esterilizem-nos e não os deixem ir para a varanda).
Se os pensamentos já são fugidios e ainda, para além de os tentarmos apanhar, temos que os ordenar para encontrar sentido nesta história, a quem é que afinal sobra tempo para transmutar a torre dos monstros em castelo de porcelana (rachou, ali já rachou).
Vejam bem o que sobra dos esqueletos de edifícios feitos por estes monstros. Nem ruir sabem com dignidade (a quem sobra tempo?)
Mas o tempo acelerou tanto que só nos sobra caminhar por entre os escapes rumo a uma promessa.
E que dor que é. Porque o facto é que somos bichos e precisamos de tempo e as nossas mentes precisam de o ver (o tempo) para o transmutar em porcelana.
Não, não pode ser só nascer, entrar na fotocopiadora e sair a preto e branco algures na vertigem da maturidade, produzir mais dejectos e entretanto morrer algures no limiar da nossa inutilidade produtiva. Do nosso abrandar inexorável.
Há mais em nós. Há mais em ti.
Por isso se marcava o tempo, a cada ano, a cada degrau da torre. Para chegarmos lá acima e limparmos o caminho de monstros marinhos e viscosos que se atreveram a voar e ensombrar os nossos dias.
A fartura nunca educou ninguém, mas começaram a imprimir e a copiar folhas vazias de alma, as fichinhas, para supostamente ensinar os miúdos mais depressa, como quem carregava no botão da impressora e lá saía mais um garoto pronto a consumir (pronto a produzir).
Deixamos de criar guerreiros e guerreiras, passamos a engordar a tribo e a cortar o cabelo de formigas submissas às ordens de tiranos que nunca tiraram uma vida (e como poderiam?) e que não sabem o valor de uma vida (de uma morte) e que não têm assombrações (e assombros) que os guiem enquanto guiam homens, de cabelo já cortado, rapado pela raiz, sem mais ritual de transição do que o da humilhação e subjugação.
Houve outrora pavões orgulhosos que encheram o peito para conquistar um lugar, agora todos depenados em aviários, confinados a caixas todas iguais com vernizes de cores diferentes, a pintarem as unhas para pôr ovos que vão ser chacinados, devorados, desperdiçados.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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