Parcerias comerciais "abrandam" interesse jornalístico em escândalos urbanísticos

Nos últimos três anos, Câmara de Gaia pagou mais de 800 mil euros a grupos de comunicação social

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por Pedro Almeida Vieira // Maio 17, 2023


Categoria: Imprensa

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É uma modalidade cada vez mais usada por empresas privadas, mas agora também por autarquias: as parcerias comerciais com grupo de comunicação social. Consegue-se cobertura mediática, sempre favorável, e até entrevistas e convites para integrar conselhos estratégicos. E talvez mesmo a parte mais apetecível: acabam-se com as notícias negativas e com investigações jornalísticas aos sempre nebulosos processos de autorização urbanística. O PÁGINA UM mostra como, nos últimos três anos, a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia usou contratos com três grupos de media para transmitir uma mensagem idílica do urbanismo daquele concelho nortenho. Não é caso único, como o PÁGINA UM revelará nas próximas semanas.


Nos últimos anos, a autarquia de Vila Nova de Gaia tem sido uma das mais activas na contratação de serviços aos grupos de comunicação social, através de parcerias comerciais com a participação de jornalistas numa promiscuidade que põe em causa a independência na cobertura noticiosa. E, obviamente, na descoberta e denúncia de processos de legalidade duvidosa, que sempre foram o apanágio de uma comunicação social independente.

De acordo com um levantamento do PÁGINA UM no Portal Base, desde 2020 o município liderado pelo socialista Eduardo Vítor Rodrigues, sobretudo através da Gaiurb – que tem a gestão do sector da habitação, do urbanismo e do planeamento, incluindo a revisão do Plano Director Municipal – assinou oito contratos de parcerias jornalistico-comerciais com três grupos de media: Público, Global Media (Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF) e Cofina (Correio da Manhã e Jornal de Negócios).

Eduardo Vítor Rodrigues, presidente da Câmara Municipal de Gaia.

O montante de maior dimensão foi entregue à Global Media, de Marco Galinha. Em 2020, a Gaiurb – que em finais de 2021 fechou as contas com um passivo de 7,1 milhões euros – estabeleceu um primeiro contrato para o evento “Praça de Natal Jogos Santa Casa em Gaia”, que incluía a sua divulgação “junto da imprensa e outros meios de comunicação social”. O valor do contrato foi fixado em 195.000 euros.

Um ano mais tarde, no dia 3 de Dezembro de 2021, o contrato foi renovado, com o mesmo fim, e pelo mesmo valor. Em Dezembro passado, novo contrato, subindo o valor para 215.000 euros. Sempre por ajuste directo.

Mas houve mais contratos da Gaiurb fora do âmbito deste evento natalício. Em Novembro de 2021, foi feito por 19.990 euros, e também por ajuste directo, uma “aquisição de serviços de comunicação”. Nada mais se sabe porque nem sequer foi reduzido a escrito o contrato, através de uma interpretação muito abrangente do Código dos Contratos Públicos.

Um outro contrato do grupo Global Media com a Gaiurb foi concretizado em 29 de Março de 2021 com a TSF – através da sua empresa Rádio Notícias – por ajuste directo para a produção de 26 episódios semanais, emitidos aos microfones entre Abril e Outubro. Apresentado como sendo uma “parceria TSF/Gaiurb”, o programa foi intitulado “Desafios do Urbanismo”, e envolveu um pagamento de 75.000 euros, tendo sido conduzido por um jornalista Miguel Midões (CP 4707), mas sem liberdade editorial.

Quanto ao Público, foi estabelecido em Abril de 2021 – mas apenas publicado sete meses depois no Portal Base – um contrato para o desenvolvimento de um projecto jornalístico de podcasts denominado “Conversas Urbanas”, no valor de 64.500 euros.

Este contrato concretizou-se através de 16 podcasts numa rubrica intitulada “Conversas Urbanas”, assumida pelo Público como tendo o “apoio da Gaiurb”. Saliente-se, contudo, que esse apoio, em concreto, foi exclusivamente monetário, ou seja, uma prestação de serviços de âmbito comercial. Este programa, financiado pela Gaiurb, consistiu sobretudo em entrevistas com especialistas em urbanismo, conduzidas pela jornalista Ana Isabel Pereira e pelo director-adjunto David Pontes, que no próximo mês assume a função de director do jorna detido pela Sonae.

Por fim, os contratos da Cofina. O primeiro foi assinado em 10 de Novembro de 2020, e o único pormenor conhecido, além do valor do ajuste directo (53.000 euros), é que serviu para promover o projecto Meu Bairro, Minha Rua durante 20 dias.

A única referência que o PÁGINA UM encontrou em órgãos de comunicação social da Cofina sobre este projecto foi um vídeo, já inactivo, no Correio da Manhã, na secção de conteúdos pagos denominada C-Studio CM. Na sua página do Facebook, a Gaiurb informa que existiriam quatro vídeos, mas apenas divulgou o primeiro, em 3 de Julho daquele ano.

Mais recentemente, em 19 de Outubro do ano passado, a Cofina assinou um contrato de 19.900 euros denominado “aquisição de serviços de promoção de Gaia Município Sustentável para o Município de Vila Nova de Gaia, no âmbito da atribuição do Prémio Nacional de Sustentabilidade”.

Para além de custear a realização de um ciclo de três conferências temáticas, uma das quais obrigatoriamente em Vila Nova de Gaia, este contrato serviu para se conseguir um “convite ao Presidente da Câmara de Gaia [Eduardo Vítor Rodrigues] para integrar o Conselho Estratégico do Negócios Sustentabilidade]”, bem como uma entrevista que acabou por ser transformada num depoimento e artigo noticioso do Jornal de Negócios de 25 de Outubro do ano passado.

Extracto do caderno de encargos

A aquisição de serviços pelas autarquias para a elaboração de conteúdos editoriais ou eventos com uma componente de divulgação noticiosa, tem sido uma fórmula cada vez mais seguida pelos media nacionais, como alternativa financeira à queda do mercado publicitário e à “fuga” de leitores.

Porém, a forma como muitos destes contratos são estabelecidos, e as suas cláusulas, levantam fortes suspeições sobre a equidistância necessária entre actividades de marketing e independência jornalística.

Em diversos contratos com cadernos de encargos publicados no Portal Base – o que não sucede com todos – constam claramente cláusulas de confidencialidade. Por exemplo, no caderno de encargos do contrato da autarquia com a Cofina, assinado em Outubro do ano passado, saliente-se que “o prestador de serviços [que engloba os seus jornalistas] deve guardar sigilo sobre toda a informação e documentação, técnica e não técnica, comercial ou outra, relativa ao Município de Vila Nova de Gaia, de que possa ter conhecimento ao abrigo ou em relação com a execução do contrato.”

Acrescenta-se ainda que “a informação e a documentação cobertas pelo dever de sigilo não podem ser transmitidas a terceiros, nem objeto de qualquer uso ou modo de aproveitamento que não o destinado direta e exclusivamente à execução do contrato”, excluindo-se apenas informações que “comprovadamente [sejam] do domínio público à data da respetiva obtenção pelo prestador de serviços ou que este seja legalmente obrigado a revelar, por força da lei, de processo judicial ou a pedido de autoridades reguladoras ou outras entidades administrativas competentes.” E determina mesmo um prazo deste estranho dever de sigilo que engloba jornalistas: dois anos.

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Mas além da participação de jornalistas em eventos, e o compromisso de cobertura noticiosa e de entrevistas a autarcas, sempre numa linha muito favorável e até por vezes encomiástica, este tipo de contratos com peso comercial levanta questões éticas muito relevantes, porque pode levar a ponderar sobre a publicação ou não de notícias desfavoráveis sobre uma determinada autarquia.

Não por acaso, ainda recentemente, duas jornalistas do Conselho de Redação do jornal Público que “as dúvidas sobre a separação entre o que são conteúdos jornalísticos e conteúdos comerciais seriam por si só suficientes” para chumbar o nome de David Pontes para director daquele periódico. Saliente-se também que há mais de um ano a Entidade Reguladora para a Comunicação Social está alegadamente a investigar mais de meia centena de contratos entre grupos de media e entidades públicas, em especial autarquias.

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