Dir-me-ás um dia que te lembras das caras em metades, como fases da lua em quarto minguante.
Não chores. Já são onze horas e já se ouve o ruído do silêncio. Como folhas de papel que roçagam umas nas outras a embalar o teu olhar que se semicerra.
Não chores. Sabes que naquele livro azul a minha mãe falou-me dos esquimós? Eu arregalava os olhos para ver melhor, na penumbra do quarto, a neve a cair e a luz céu que emanava de dentro do iglu. O ajuntamento de vários esquimós que preparavam a demanda para ir à caça.
Dorme. Como eu quando deitava a cabeça na almofada, com força, com o entusiasmo de querer saber como ia correr a caçada. E com a cabeça encostada contra a almofada ouvia,
fesh… fesh… fesh…
compassado, um ritmo suave sempre
fesh… fesh… fesh…
e via os esquimós afastarem-se na neve, e eram as suas passadas!
fesh… fesh… fesh…
a pressão das botas de pele e pêlo contra os cristais de gelo…
fesh… fesh… fesh…
a afastarem-se na neve até os perder de vista. Até ficarem brancos como tudo era branco, até adormecer.
Afinal era o meu coração a bater. Mas eu acreditava que era o som das passadas de esquimós na neve.
Nunca ouvi o mar num búzio, mas ainda hoje ouço passos de esquimó na almofada, a aquecer o coração.
Se te ponho em lume brando tantas vezes é para poderes ouvir o mar ou passos de esquimós na neve.
De qualquer modo são estas crianças que me tornam os dias maiores. A viver no ritmo delas, o dia estende-se inexplicavelmente.
Sinto o seu aborrecimento a torná-los líquidos, esparramados no chão, sem força nas pernas para tanta vida de uma só vez. São um copo de leite, o doce velho de uma pêra semi-roída ferida e a morrer na mesa, dormir sestas para que os sonhos invadam os dias também.
Se te mantenho em lume brando é porque já vejo a miúda a borbulhar, quase a vir por fora, gestos que tínhamos as duas, só nossos, e já não são de ninguém. Agora acho sempre que se lhe estendo a mão me queima. Escaldada continuo, mas dói e estala a pele. À falta de mais pergunto o que comeu. O que comi? Mãe, estás sempre a perguntar-me o que comi! Come fruta… Eu sei, ainda hoje comi uma pêra!
Mau!
Insistes com essas coisas e eu bem me lembro do som da tesoura na cozinha, a
cortar-me os caracóis,
fesh! fesh! fesh!
Eu chorava, mãe, não me cortes os caracóis! Eu quero ter caracóis!
“Vai lá fora ao quintal que tens muitos.”
Se calhar vivemos todos esses momentos em frigoríficos. Numa paisagem de memórias petrificadas, polidas pelo vento gélido num assobio. E os esquimós a caminharem por entre a embalagem de ovos e o passeio ao jardim zoológico. Em saltos vislumbro o macaco que me agarrou os colarinhos para roubar os amendoins. O meu pai a salvar-me.
Devagarinho o pânico esgueira-se para dentro de mim. O céu avermelha-se de nuvens nocturnas e reflexos de lâmpadas.
Aguentar de novo a pesca de moedas nas almofadas do sofá, suster a respiração, vamos lá outra vez. Espiralar sonos em anúncios de concursos da nossa infância, a bota Botilde e um hospital em ruínas, cadáveres a passearem-se em rodapé. Almas penadas que ninguém quer ver, assombrações em que ninguém quer pensar. Está tudo normal, está tudo normal, está tudo normal.
Devagarinho o pânico instala-se dentro de mim. Estende as pernas no sofá da minha sala e come amendoins. Não chores, eu lembro-me de tudo quando olho para ti e continuo. A pele estala e continuo.
Mãe, que saudades que tenho tuas. Andamos todos mortos a brincar às ausências.
E que mal que me saio a proteger a inocência deles. Porque não sei se devo fazê-lo.
Devo? Como fingir que as andorinhas vão continuar a regressar na Primavera, se o céu se avermelha por nos ver a regressar dos mortos?
Um dia prometo que me rio disto. Não me rio mas sorrio. Pequenino.
Basta mantermo-nos frios, a caminhar na neve de cabeça baixa sem esquecer que leva tempo chegar ao fim. Sentir o conforto do carapuço. Quentinho.
Não chores. Sabes que nascem malmequeres nos telhados se lhes deres tempo suficiente?
—
Transformas-te em mim, longe, mas em mim.
Até a tua carne estala da mesma maneira e eu aqui, sem sentir o ar à tua volta há demasiado tempo. Já me falham as ironias porque escorrego em saudade. Saudade de coisas que realmente nem chegaram a ocorrer, troco versos em diálogos com a árvore podada. Ninguém a deixa crescer porque ainda deita a casa abaixo, e que deite ou que a levante que eu quero esticar os braços e espreguiçar-me com ela há tanto tempo. Em vez disso mais uma raiz que me puxa e me tolhe. Mas tão límpidos que ainda são os teus olhos mãe, azuis como o livro que lhe dei a provar, fixos, a desconfiar. Remóis, já me tiraram aquilo tudo do sítio. Não tiramos, reformulamos.
Quem me dera o meu rico filho, mas somos espelhos umas das outras, a cismar baixinho se isto é o melhor que podemos. Se já retribuímos. O coração aperta, porque nunca pára. Se somos “mãe” agora vais ver, vais ser mãe de toda a gente e nunca acaba.
E continua aquele corpo a encolher-se, ali deitado. A flor murcha continua a ser flor, mas vive uma luta, todos os dias, a manter o cheiro da morte longe daqui.
Abrir as janelas para deixar a morte sair. Que trabalho ingrato, espantar a noite todos os dias para fora de casa e ninguém vê nada. Oh mas aqueles sorrisos do meu rico menino… E não pára.
Ontem olhaste para mim enquanto te punha uma colher de sopa na boca. Quase ouvi o teu pensamento. Quem nos dera não estar aqui mas estando. Passamos a vida a fechar a porta a ladrões, burlões, podadores e vendedores porta a porta.
Agora temos de fechar a porta ao ar também, suster a respiração e chorar a ver as árvores irem abaixo, fruta que já não nos vão dar. Porque é que eles não gostam de árvores? Eram da minha avó, foram mimadas e eram doces como o carinho que ela me dava. Tu a falhares-me e ela a rir, uma gargalhada grande de vez em quando, maior que o mundo. Ou o sorriso pequenino e tu escondida debaixo das cobertas…
“Eu vou morrer meus filhos!”
Sim mãe, vamos todos e ainda nem morremos o suficiente. Ainda podemos perder mais uns bocados dentro deste frigorífico. Pode ser que alguém abra a porta e veja esquimós ao longe, por entre o fiambre e aquele cheiro de carne e iogurtes.
Hoje dou-te mais uma colher de sopa, é sempre uma de cada vez todos os dias, manter-te viva tornou-se a minha razão de ser. Não deixo que deitem abaixo esta árvore. Porque é que eles não gostam de árvores? Dizem que tapam as vistas e fazem lixo. Não sei para onde querem olhar. Não há nada para ver ali quando deixa de estar a árvore na frente, mas enquanto ela está eu posso ver as andorinhas a regressar e a gata velha cá em baixo a murmurar. A ralhar baixinho que quer voar.
Até fica a parecer nova, orelhitas afiladas para os chilreios.
O teu corpo está tão pesado. Ainda bem, que assim sei que ainda queres estar viva, manténs-te pesada para não flutuares como uma folha para o céu, agarras-te com força ao chão e olhas para nós muito determinada, a desconfiar. Não vais morrer, porque não queres, vais ficar aqui porque te enfurece o anoitecer. Até te vejo de novo a levantares-te e a acender as luzes todas, que lá por seres velha não vais deixar que te pisem, nem que chores enraiveces-te igual e salvas pelo menos uma árvore, gritas por socorro até que alguém te acuda.
Mexi nas tuas cartas de amor hoje de manhã. Tantas que tens, tantas vidas que viveste em pequenos papéis sujos. Algumas estão escritas a lápis e mesmo assim não esbateram, mais de setenta anos depois. Com que força terão sido escritas para que hoje ainda as consiga ler. Acho que agora merecem resposta, ou pelo menos serem devolvidas. Vou pô-las no correio e ver se chegam a outra pessoa.
Cuidar-te até eu própria desvanecer, escreveria na carta. “Cuido-a para que esta carta se mantenha com a outra margem, para ter onde aportar e não ficar suspensa no vazio, a flutuar na imensidão fria. A cidade vazia e a neve a esgueirar-se por sobre os telhados. Os malmequeres a vergarem e o gelo a escorrer das pedras.”
Nas cómodas amontam-se os retratos, os teus, os nossos, os desenhados, pintados e retocados para embelezar a memória daquilo que lembramos enquanto existimos. Temos de saber que um dia só sobrará isso e ninguém para legendar aquela vida.
A nossa cidade está vazia, as sombras das pontes na água já não estremecem mais.
Até o rio parou e ouve-se apenas o vento a sussurrar tímido. Até a brisa vacila porque se lembra de nós. As gaivotas gritam porque têm saudades nossas.
Filha.
Basta um de nós faltar que acredita que o vento o saberá.
—
Tenho de começar outro dia enquanto finalmente dormes.
Levanto-me devagarinho para parecer que o meu calor se mantém contigo e estico as pernas para o gelo do quarto. Saio pelos furos da persiana para que não notes a deslocação de ar.
Corro em bicos de pés a cozinhar os cheiros da manhã, escancaro janelas em casa para sacudir as mortes lá para fora.
Metade do que faço é feito em surdina enquanto dormes.
A outra metade é viver em insónia para te apanhar acordado a sorrir.
Onde o sol não me chega acendo luzes que se vão fundindo, em corredores frios e embolorados, a água escorre e que vontade me dá de deitar paredes abaixo!
Ouço rádio na esperança de não saltarem os fantasmas pelos furos das colunas.
Está tudo normal porque agora é assim mesmo.
Enquanto o café negro gira debaixo do meu queixo a fumegar contemplo vidas passadas.
O que mais sobra?
Se tento vaguear por caçadas futuras sinto o pânico a espreguiçar-se em frente a mim e, com medo, só penso em esconder-me debaixo das cobertas.
Quando era pequenina a minha avó cobria-me com muitas cobertas. Tantas que quase me esmagava debaixo da cama. Sentia-me a ervilha no conto da princesa e pensava que me contavam histórias todas ao contrário. Arreliava-me que só falassem da princesa com ar maniento e a ervilha ali espremida entre colchões a asfixiar.
Foi só uma sesta assim. Fingi que dormi mas mantive-me acordada para não correr o risco de me expirar. Não me obrigaram mais a dormir de tarde.
Adoço o café e tinjo-o com leite para que não me queime por dentro.
Por uma fresta de luz do dia somam-se pára-raios a abanar. Carcaças de um tempo que já não existe. Andamos todos a arrastar esqueletos.
Chegas também tu.
Despes-te por completo em frente à porta e embrulhas as roupas numa saca. Entras com um sorriso em bicos de pés, cada dedo uma pancada…
pum, pum, pum…
Até ao chuveiro a saltitar como se o chão ardesse.
Amor da minha vida, sabes tudo o que se revolve cá dentro? Todas as saudades, todas as ausências, todos os futuros a gelarem em flocos suspensos no ar.
Se pesas a caminhar é porque queres estar vivo, ainda bem, teimas em agarrar-te ao chão para que o vento não te leve também.
Pousam passarinhos nos pára-raios e o metal a dar, a dar.
Se não fizer barulho a caminhar será que já fui com o vento como uma folha? Se continuar a tactear no escuro para chegar ao teu berço e te ver a esfregar os olhos será que passo a existir quando me vês?
Sorris e embeveço-me a contemplar-te.
Escorro-me entre a cortina, abro a persiana, deslizo a janela.
Sabes que a partir de agora andamos de meia em meia estação, sem saber se temos frio ou calor, como fases da lua em quarto crescente.
Vamos voltar ao início mas um bocadinho pior.
Não chores. Já são onze horas e já se ouve muito ruído na rua. Vejo lá fora passos apressados de roda da farmácia, embarram cotovelos e saltitam para trás com medo do ar, hesitam e chegam-se de novo, corpos baralhados com o frio da neve.
Ao longe avisto os esquimós a regressar.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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