CRÓNICA DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA NO ESTÁDIO DA LUZ

O PÁGINA UM foi à bola… e conta como foi

por Pedro Almeida Vieira // Maio 27, 2023


Categoria: Opinião

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Por um dia, pelo menos por um dia (vamos ver se não me habituo mal) vale bem a pena ser jornalista desportivo, sabendo-se que, para minha felicidade, sou o director do periódico para onde trabalho (PÁGINA UM), e não me impus nenhum planeamento nem horário de publicação.

Ademais, sabendo não ser o futebol o nosso core business – por muitas caneladas que ande a apanhar, por muitos golos que marque nas balizas adversárias, por muito que seja o entusiasmo das minhas hostes (leia-se leitores) para enfrentar manobras de bastidores e golpes de secretaria. Tudo isto com um único doping: os apoios dos leitores.

Enfim, primeira vantagem de se ser jornalista desportivo: não tive de ir apanhar filas nem acordar pela manhã da terça-feira da passada semana para tentar, como sócio, comprar um bilhete no site do clube. Para felicidade, tive a ideia de escrever uma crónica em pleno Estádio da Luz, solicitando acreditação, fazendo assim “passar” por jornalista desportivo – sonho de criança apanhado quando, pela rádio, ouvia os relatos de Artur Agostinho e Ribeiro Cristóvão, para assim imaginar como teriam sido os golos antes de ver, muito mais tarde, os resumos na televisão sob a batuta do Mário Zambujal.

(onde já vão os tempos do Artur Agostinho, do Ribeiro Cristóvão e do Mário Zambujal [e já agora do saudoso Rui Tovar, que tem um filho que agora ainda é mais refinado no saber, e também do inigualável Gabriel Alves… estou a ficar velho]… ah, e se a memória não me falha, o sonho de relatador desvaneceu-se no tempo das rádios piratas, após testar os meus dotes: um desastre – nunca fixo bem nomes, a voz nunca se mostrou muito sincronizada para as ondas hertzianas radiofónicas e a eloquência ritmada, por força da juvenil timidez, também não serviu de alento)

Corrijo-me (que não é apenas o António Costa a corrigir-se): é errado, e até deontologicamente censurável, eu dizer que me fiz passar por jornalista desportivo, pois pode soar a (des)qualificativo. Todo o cuidado é pouco, e declaro aqui haver somente dois tipos de jornalistas – os bons e os maus. Além disso, não quero aqui usurpar funções nem escrever nada que possa ser interpretado como depreciativo, e vai daí lá tenho o senhor juiz da ERC a chatear-me, a senhora jurista “de mérito” da CCPJ a azucrinar-me e os anónimos senhores do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas a quererem tramar-me.

(entretanto, Gonçalo Ramos marca aos 7 minutos, de cabeça, ao segundo poste, num cruzamento clássico de Bah pela direita. Euforia nas bancadas. Não sei se ainda cheguei a levantar o braço esquerdo, como acto involuntário (deontologia obligé); talvez não: estava a escrever esta crónica)

Enfim, recebida a acreditação, o habitual: apanhar metro na Baixa-Chiado, com as escadas habitualmente avariadas (incrível como a administração do Metropolitano de Lisboa insiste, qualquer que seja a equipa, pensa que nos convence das suas capacidades de gestão de um meio de transporte quando nem o raio de umas escadas rolantes mete a rolar sem interrupções constantes), e sair no Alto dos Moinhos. Um mar de gente – soa a lugar-comum, bem sei. Muito vermelho, como convém e se esperava. Até aqui nada surpreendente para um adepto – pouco assíduo desde os tempos de pandemia.

Apesar da turba encarnada, mas ordeira por serem do mesmo “rebanho” (que o Estádio da Luz costuma ser um bom redil, este é dos bons, apesar de por cá já terem passado pessoas que bem mereciam estar atrás de grades), atravessar a ponte de acesso ao recinto, através do Alto do Moinhos, deu logo para perceber que seria dramático que houvesse uma surpresa: a derrota do Benfica contra o último (e já condenado à despromoção), o Santa Clara, que também anda de águia no emblema. Alguém perguntar a um daqueles vestidos a rigor (eu não estive assim) se temia alguma surpresa seria, para um jornalista, acto tão ridiculamente idiota como questionar um desafortunado sobre o que sente depois de um tsunami lhe levar a casa.

Acreditação recolhida, o rookie do jornalismo desportivo andou um pouco às aranhas, e teve de perguntar a um assistente por onde raio andava o elevador para subir do piso -2 para o terceiro na porta 30. Pior ainda quando, já no piso correcto de acesso à bancada central, um steward lhe entrega uma senha de refeição para ir levantar, que a fome pode apertar. Quer dizer, para sacar um pequeno farnel. Não sabia eu que havia e que se recolhia no bar.

O melhor, nestas coisas, quando se é rookie é ser uma “Maria vai com as outras”: segue-se um tipo com uma acreditação de jornalista e faz-se o que ele faz. Enfim, foi assim que aprendi a ser jornalista nos anos 90, vindo de um curso, Engenharia, onde se fica com a fama, e amiúde o proveito, de escrever mal. Da próxima já sei como se faz e até ajudo quem não saiba.

Mesmo depois disto, não soube ao certo ainda onde era a tribuna da imprensa. Quem tem boca chega a Roma, e lá cheguei, às tribunas, não a Roma, quase ao nível do Terceiro Anel do antigo estádio, mas neste, mesmo no topo, fica-se com uma visão fenomenal.

Ainda bem que vim cedo. Aconcheguei-me numa das vastas mesas corridas, muito espaço, puxei computador, e o lanchezinho, a saber: um Compal de laranja do Algarve, uma maçã, uma barrinha de cereais e uma baguete de cereais com paio, queijo cheddar e espinafres; nada mau, embora fosse preferível uma cerveja preta e uns tremoços ali no Café da D. Lina.

(aos 28 minutos, Rafa marca, em contra-ataque, com a sua habitual mas eficaz sorte; o remate ressalta num defesa; se assim não fosse o guarda-redes do Santa Clara apanharia a bola, pois o chuto saiu atabalhoado).

Enquanto escrevo a crónica – ou o que se quiser chamar a isto que vos apresento –, fico a pensar que, se calhar, ser jornalista desportivo somente será interessante para quem, na verdade, não o é. Ponho-me aqui a cogitar, em simultâneo a um jogo que ali em baixo decorre molemente, que, de facto, se me enviassem aqui para escrever mesmo sobre as incidências do jogo, eu estava feito. Não conheço nem um dos jogadores do Santa Clara. Não sei sequer o nome do guarda-redes (agora já sei, chama-se Gabriel Batista, brasileiro de 24 anos, fui ali ao site do Record), e além disso, daqui de onde escrevinho, por força (ou impedimento; não no sentido de fora-de-jogo do português do Brasil) da minha miopia e astigmatismo, tenho até dificuldades de reconhecer os números das camisolas dos jogadores.

(Um relato de futebol feito por um míope arrisca a ser uma ficção… Lá teria eu a CCPJ, a ERC e o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas à perna, ou a morderem-me as canelas)

Além de todas estas lacunas, físicas e talvez de outra índole, não tenho conhecimentos suficientes da Ciência Ludopédica para dissertar sobre os esquemas tácticos do Roger Schmidt, e já é uma sorte saber pronunciar o nome do Odisseas Vlachodimos (porque já está por aqui há uns anos, embora ainda não saiba falar português, porque parece que, para ele, o português é pior do que grego), e nem sequer sei muito bem soletrar a nominata do Aursnes, compatriota do secretário-geral da NATO, quanto mais opinar sobre a sua polivalência.

(entretanto, a primeira parte terminou, seguiu-se o intervalo, e já o Grimaldo marcou o seu penalti aos 60 minutos, depois do VAR assinalar mão na bola de um jogador do Santa Clara, não me perguntem quem, pois teria de ir ver. Aviso já que vi o penalti ser concretizado seis segundos antes de vocês verem a bola entrar na baliza, pela televisão; vantagens de se estar no estádio)

Na segunda parte, não se joga nem nada se vê de bola; só se faz festa rija, com petardos, luzes e cânticos. Talvez desde o primeiro golo do Gonçalo Ramos se sente um clima de festa, eliminados em definitivo os fantasmas que sobrevoaram um campeonato que pareceu, em certa fase da época, um passeio, mas que teve ali umas jornadas em que se andou a chamar pelo tio…

Na tribuna da imprensa, tudo calmo. Não conheço ninguém, a bem dizer. Há uns que serão de rádio – embora as transmissões e relatos sejam feitas noutro nível. Outros da imprensa, mas alguns não estão a escrever nada. Sinto-me, a bem dizer, um ET, o que acho a melhor forma de se ser jornalista, porque me foco apenas na observação.

(última substituição, com a entrada de Samuel Soares, um jovem guarda-redes negro de 20 anos; pelas ovações que recebeu, e sempre que tocou na bola, espera-se que seja mais acarinhado do que Neno e sobretudo Bruno Varela)

Apito final.

Canta-se e dança-se ao ritmo de música techno, enquanto, em baixo, jogadores, equipa técnica e dirigentes celebram. Posso garantir-vos que a estrutura do Estádio da Luz foi bem pensada, e feita para aguentar um terramoto: abana mas não cai. E “o campeão voltou”, grita-se em uníssono.

Mais de meia hora depois do apito final, poucos arredaram os pés das bancadas, aguardando ainda pelo regresso dos jogadores para mais festejos. Já passam das 21 horas e prepara-se o relvado para nova recepção depois do banho tomado.

Estiveram aqui, segundo informações do speaker, 64.012 pessoas. Não sei se contaram comigo; talvez não, porque não sou adepto, porque supostamente estou aqui como jornalista imparcial e independente, bastando-me o disclaimer.

(se calhar, para demonstrar verdadeira independência, teria de ter conhecimento de algum escândalo do Benfica para depois noticiar… assim é que se prova a independência; não é com declarações e bateres no peito)

Depois de tudo isto, segue-se o Marquês de Pombal, onde a Feira do Livro teve, enfim, de fechar portas mais cedo por causa dos festejos dos benfiquistas.

(estou agora a recordar que, em 2010, tive de adiar o lançamento do meu romance “Corja Maldita”, por razões ponderosas: o Benfica jogava o seu derradeiro jogo também no Estádio da Luz contra o Rio Ave; de quando em vez, a Cultura pode esperar, mas não demasiado).

Por mim, bastou por agora a experiência. Fico-me por casa, a descansar e a divertir-me em família, enquanto também penso como ultimar uma reportagem sobre os meandros da promiscuidade entre a indústria farmacêutica, certas sociedades médicas (e médicos) e a imprensa.

(às 20h34, o Rui Costa, presidente do Benfica, compromete-me a isenção, enviando-me o seguinte SMS: “Parabéns Pedro! Somos Campeões! Esta conquista é dos Sócios. Obrigado por fazeres parte desta grande família. Parabéns a todos nós! Viva o SL Benfica!”… Ó Rui, ó pá, não me lixes com estas intimidades… olha que já tenho os reguladores à perna por menos)

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