‘A Arte de driblar destinos’: o título do romance de estreia de Celso Costa, com o qual venceu o Prémio LeYa aos 73 anos – e que recebe em mãos este sábado na Feira do Livro de Lisboa – ilustra na perfeição a vida do matemático, professor e estreante autor brasileiro. Nascido no Paraná, de uma família com escassos recursos financeiros e com morada numa propriedade remota chamada Ribeirão do Engano, o romancista teve um percurso inusitado: para além de fintar a pobreza, a sua paixão pelos números levou-o a estudar Engenharia e Medicina, desistindo de ambas antes de, finalmente, encontrar a sua vocação no prestigiado Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), onde se focou na Geometria Diferencial. A partir daí, não houve mais recuos. Com o seu doutoramento, descobriu as equações de uma superfície mínima, solucionando assim um problema matemático com mais de dois séculos. Por esse motivo, a “Superfície Costa” foi baptizada em sua homenagem. Agora, chegada a altura de abandonar o papel de professor universitário, Celso Costa brincou novamente com o destino e abraçou as Letras. Algo que, afinal de contas, não era assim tão improvável: como confessou ao PÁGINA UM, apesar de seguir a sua amante Matemática, a Literatura sempre esteve ali, num lugar especial, no seu coração.
A Arte de driblar destinos é um romance de autoficção, muito inspirado na sua própria vida e nas suas experiências pessoais. Como surgiu esta vontade de escrever e de contar a sua história?
Essa vontade de fazer uma narrativa acontece num momento da minha vida em que estou na iminência de me aposentar da Universidade. Eu sou professor universitário, e ainda continuo a dar aulas, mas actualmente estou aposentado. E mais ou menos uns seis anos antes de me aposentar, como sou um leitor compulsivo… eu leio muito desde sempre, assim mais intensivamente desde os 14 anos. Mas quando eu comecei a ter mais acesso a literatura, comecei a ler muito. Então, com 18 anos eu conheci Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, Júlio Cortázar, Jorge Luís Borges, o nosso Guimarães Rosa com o Grande Sertão: Veredas, Clarice Lispector, Machado de Assis. Já nessa idade, eu tinha uma certa amplitude de leituras. Lia os sonhos que os outros tiveram. E aí, segui uma carreira de matemático, e na iminência da minha aposentadoria, não sei se foi muito bem calculado, porque geralmente a gente não calcula muito o que acontece. Acho que as oportunidades e os desejos de repente eclodem, e você vai atrás daquele desejo.
E foi o que fez?
Sim, aí surgiu um desejo de escrever uma narrativa ficcional que se passaria num ambiente mágico chamado Aleph, pegando no O Aleph do Jorge Luís Borges, e que pudesse fazer um panorama da história da Matemática, mas focado através das lendas. Por exemplo, qual é a veracidade da lenda da maçã que caiu na cabeça do Newton? Será que lhe caiu mesmo essa maçã na cabeça? Arquimedes, quando descobriu a lei de flutuação dos corpos em líquido, ele saiu nu pela rua de Siracusa porque ele descobriu essa lei quando estava imerso numa banheira, lá nuns banhos gregos. Os gregos tinham muito a questão dos banhos, aqueles grandes banhos colectivos. Quer dizer, colectivos só para a alta classe do poder. Então, Arquimedes estava lá, e de repente teve aquela epifania, e descobriu uma lei física que diz que o volume de água deslocado é igual ao peso do corpo que está em flutuação. É uma lei simples no fundo, mas só é simples depois de se saber. Eu escrevi, então, sobre esse ambiente mágico colocando as lendas. Esse livro teve uma boa aceitação do público que orbita em torno da Matemática, e que é muito, porque são os professores da escola básica, os alunos universitários, os professores; é um público grande.
Refere-se ao primeiro livro que publicou, A Vida misteriosa dos matemáticos, em 2018.
Sim, foi o primeiro livro que eu escrevi, e teve uma repercussão muito boa que me animou. E falei: então porque não ficcionar as minhas memórias? Também têm o seu valor dramático. O seu valor pícaro, como disse o Manuel Alegre, do júri da LeYa. Então, resolvi escrever as memórias ficcionadas. E essas memórias, tal como A vida misteriosa dos matemáticos, demoraram-me cerca de quatro anos a escrever. Até chegar o momento em que eu coloquei o manuscrito no correio e mandei para a LeYa, que também foi um momento importante. E esse primeiro impulso que eu tive com o meu primeiro livro, levou-me a fazer essa ficção, que evidentemente vai ter uma continuidade, porque ainda há mais um livro pela frente. E outros tantos projectos que eu tenho sobre ficção, tenho muitos projectos iniciados. Então, eu vejo o Prémio Leya com um significado que o próprio nome diz: um prémio. E esse prémio certamente vai impulsionar-me, trouxe ventos de incentivo para que eu continue a escrever.
Caminhou sempre nos campos das ciências exactas. Estudou Engenharia, Medicina e Matemática, áreas que são geralmente vistas como antagónicas à Literatura e às Artes. Como alguém que se movimenta tanto nos números como nas letras, como é que percepciona as diferenças entre estes dois domínios?
Ambas são linguagens. Então, nós temos a linguagem da Matemática e temos a linguagem da narrativa. E quando eu falo em linguagem, falo numa coisa um pouco mais ampla, porque a linguagem matemática tem regras muito fixas. É como jogar xadrez. Quer dizer, você tem que seguir as regras para chegar a um resultado. Então, a Matemática tem as suas regras lógicas, já desde Aristóteles, mas evidentemente que foram aperfeiçoadas com o passar do tempo pela Humanidade. Então, desse ponto de vista, os preceitos para se fazer Matemática é você aprender truques para usar essas regras. Por exemplo, a gente tem livros de xadrez, que explicam as inúmeras aberturas possíveis. Porquê? Porque o jogo do xadrez é infinito, assim como o jogo da Matemática também. Na verdade, é mais infinito ainda, porque o jogo da Matemática está num degrau acima do xadrez, evidentemente. Então, se você de repente tem essa capacidade, que é uma coisa também um pouco inexplicável, evidentemente que todos podem caminhar na Matemática. Alexandre Alekhine, que foi talvez o maior jogador russo de xadrez, foi preso durante a época dos czares russos e colocado numa prisão, e jogava xadrez com ele mesmo. Mas o xadrez era um xadrez imaginário no tecto da prisão. Eu vejo que a Literatura também tem as suas regras; a narrativa tem as suas regras, que vão-se moldando ao tempo, vão-se desdobrando e reinventando. E é preciso também aprender essas técnicas, e eu dediquei-me muito a aprendê-las. A técnica do gancho; de atirar alguma coisa na narrativa e não contar tudo exactamente, para depois recuperá-la mais à frente. O pai dos contos russos, um dos maiores contistas que a Humanidade teve, que é Tchekov, dizia que se num conto, você coloca uma espingarda, essa espingarda tem de atirar nalgum capítulo. Ou se apresentar um doente de tuberculose no capítulo 50, ele tem que dar uma tossidinha no capítulo 5. Então, existem regras. Por exemplo, em A Arte de driblar destinos, o primeiro capítulo é uma tourada. E do ponto de vista da sequência cronológica, não é a primeira memória do narrador, porque a história vai desde que o narrador tem três anos, até aos 19. Mas o episódio da tourada acontece quando ele tem cinco anos. Não estou dando spoiler, porque o primeiro capítulo não é considerado spoiler [risos].
Então, começar o livro com o episódio da tourada foi uma questão técnica?
Sim, comecei pela tourada porque a narrativa pede isso. Uma narrativa é um compromisso que você faz com o leitor, e que é: “vamos viver o mesmo sonho”. E você não pode perder o leitor por um escorregão com a verossimilhança, não. Mas se esse contrato com o leitor é um contrato que se estabelece e é cumprido, então o leitor e o narrador vão até ao fim da situação. Então, pelo menos este é o meu ponto de vista, é preciso iniciar a narrativa lá no alto da chamada às emoções. Eu creio que essa tourada, esse pequeno espetáculo que se instala nessa pequena cidadezinha de mil habitantes… Uma cidade que não tem televisão, no tempo de 1960. Aliás, também não tinha geladeira, porque as geladeiras eram para os mais abastados que podiam ter. Mas tinha electricidade, que já era um grande avanço, e as vitrolas. Então, nessa pequena cidade, os grandes movimentos, as turbulências que aconteciam, era quando vinha uma tourada, um circo, ou um rodeo. Eu comecei com a tourada no sentido de ser um momento festivo, em que as emoções estão lá no alto.
Se sempre teve uma paixão tão forte pelas letras, por que esperou tantos anos para começar a escrever
Porque, de alguma maneira, a Matemática é uma amante muito exigente. E é muito divertido também, sempre foi muito divertido. Eu sempre trabalhei desde pequeno, desde os meus onze anos, que a minha família tem as suas precariedades. Vem de uma fazenda que se chama Ribeirão do Engano, e a cidade de onde a minha família toda veio chama-se Cinzas. Então, pais analfabetos, e eu sempre trabalhando em tudo quanto era ofício desde muito jovem. E depois numa cidade um pouco maior, já trabalhava numa oficina mecânica. E eu entregava as chaves para os mecânicos trabalharem lá nos carros, e ficava num pequeno escritoriozinho que tinha uma bancada. Aí chegava um mecânico, e falava “me dá uma chave de boca três quartos”. Eu apontava, e quando ele devolvia eu dava baixa. Mas enquanto isso, eu fazia divisões mentais no papel. Mas você pensa que eram umas divisões quaisquer? Não, eu dividia um polinómio por outro polinómio. Eu brincava com divisões de polinómio. Então, apesar de eu estar sempre trabalhando, a Matemática era essa amante exigente. Eu ficava mais ou menos quatro, cinco horas por dia ininterruptamente. E aí, comecei a impressionar os professores. E logo no final da minha escola secundária, antes de ir para a capital e ingressar na universidade, eu apaixonei-me por uma garota da minha classe, mas ela não me dava muita bola… E aí, eu escrevi um caderno inteiro de versos para ela. Dei-lhe e, felizmente, o caderno desapareceu. Aliás, ainda temos um grupo de WhatsApp da nossa turma, que eram 17 pessoas, e ela felizmente perdeu o caderno. Nunca mais vou ver esse caderno [risos].
Portanto, não resultou? [risos]
Não, não resultou nada, não me quis. Eu fui embora para Curitiba e as nossas vidas separaram-se durante muito tempo. E aí, temos esse grupo de Whatsapp das 17 pessoas que se formaram lá naquela cidadezinha do interior, e que depois cada um foi para o seu canto para fazer a universidade.
Ainda a propósito da exigência da Matemática, numa entrevista recente chegou a dizer que alguns matemáticos proeminentes tinham terminado os seus casamentos com a obsessão de resolver certos problemas. Na sua tese de doutoramento, o Celso fez uma descoberta que resolveu um problema matemático com mais de 200 anos. No seu caso, houve algum momento em que a matemática lhe tenha roubado espaço para a vida pessoal?
Não, acho que não. Nesse caso da vida pessoal, não foi afectada pela minha dedicação à Matemática, mas geralmente afecta um pouco. Fica muito obsessivo. E na verdade, quando eu fui para o Rio de Janeiro para frequentar um mestrado e um doutoramento na área da Matemática, num centro chamado IMPA – Instituto de Matemática Pura e Aplicada, que é certamente o mais importante centro de matemática da América Latina. Mas nessa época eu morava em Santa Teresa, que é um lugar que lembra muito Lisboa, porque é cheio de ladeiras. E os meus colegas na república que nós tínhamos lá, onde morávamos todos, tinham um conjunto de rock chamado O Bando da Santa, tinha um grupo de teatro infantil também, e mais eu e um amigo, que éramos matemáticos. A gente vivia todos ali na mesma comunidade. Então, foi nesse ambiente que eu continuei os meus estudos. E na minha tese de doutoramento eu resolvi esse problema antigo, e a Superfície Costa, que o mundo da Matemática denominou assim, passou a ser a terceira superfície no elenco das superfícies com as qualidades que ela tem, que é uma superfície mínima e mergulhada no espaço. Tem uma característica, um registo de propriedades que a fazem muito especial. Antes dela, existiu o catenóide, descoberto pelo Euler, um matemático suíço, em 1740, e o helicóide, que 150 anos depois, serviu para modelar a molécula do ADN. A molécula do ADN consiste em duplos helicoides que são unidos por pontes de proteínas. E a Superfície Costa surgiu como uma terceira superfície nessa galeria.
E que impacte é que teve essa descoberta na sua vida profissional?
Teve uma repercussão internacional muito grande e colocou-me na Academia Brasileira de Ciências do Brasil. O presidente da República na época, logo depois, condecorou-me com a medalha de Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico. Essas honrarias, o reconhecimento…
E agora, é novamente distinguido, mas desta vez pela arte literária…
É, aí eu um dia estou deitado porque ainda não me tinha levantado, porque lá é quatro horas a menos que em Portugal, e eu durmo tarde; às sete e meia da manhã, e o Manuel Alegre – eu vejo aquele número imenso com 55, internacional –, me ligando dizendo que eu tinha ganhado o Prémio LeYa. Fui apanhado de surpresa, de maneira realmente muito genuína, porque eu nem conseguia dizer-lhe nada. Eu só disse três palavras: poxa, poxa, poxa! [risos] E ele disse para eu me preparar, porque ia ter os jornalistas a ligarem-me. Mas ainda deu tempo de eu avisar a minha esposa, os meus filhos e os amigos mais próximos que eu tinha ganhado o prémio. Que coisa fantástica [risos]. Inacreditável, como é que pode, não é? Os meus amigos diziam, “o que é isso, mas você é um matemático e ganhou o Prémio LeYa, que história é essa”?
Tendo em conta o seu percurso, seria um cenário improvável.
É, muito improvável. Acho que talvez seja o único caso da História [risos]. Bom, do Prémio LeYa certamente. Nós temos psicólogos que escrevem literatura de alto nível, e médicos também. Eu tenho uma filha médica, começou na Medicina há uns três anos. E eu quase fui médico, não é? [risos]. Quando a gente estava numa mesa um dia, uma pessoa perguntou se eu gostaria de ter tido outro destino. E eu disse que talvez gostaria de ser médico. Porque acho que um médico tem uma experiência com a realidade que é muito contundente. A vida dele, o ambiente onde ele observa, de momentos muito delicados da existência humana. Então, tem muito médico que faz boa literatura, porque ele tem uma massa de observação muito importante.
Mas quando estudou Medicina, acabou por desistir do curso. Mesmo assim, olhando para trás, pensa que gostaria de ter enveredado por esse caminho?
Eu gostaria de ter sido médico porque agora quando eu peguei na literatura, eu pensei, poxa, se eu tivesse a observação de um médico [risos]… Acho que poderia beneficiar disso. Mas na época em que eu estudei medicina, na verdade eu queria ser professor do cursinho. Aqui em Portugal não tem essa questão do cursinho, porque se entra na universidade através de uma prova.
Sim, em Portugal a média dos exames soma à média do ensino secundário. No Brasil têm que ter aulas de preparação para o exame que concede o acesso ao ensino superior, o vestibular, certo?
Sim, no Brasil zerou o jogo, só a prova é que conta, e essa prova é para as universidades federais e é igual no país inteiro. Então, são milhões de estudantes fazendo aquela mesma prova, e tem uma que é de redacção, de Física, Química, essas coisas. Dependendo da sua classificação, você pode pedir uma primeira carreira ou uma segunda carreira. É evidente que, por exemplo, na área da Medicina, a pessoa pede Medicina ou depois pede Odontologia ou Veterinária, que são profissões em que a concorrência não é tão alta. Então, você pode optar por uma segunda carreira que não é aquela que você vislumbrava. Na época em que eu estava em Curitiba, que é a capital do Estado [do Paraná], e que eu estudava Engenharia, estava um pouco desgostoso porque eu gostava mesmo era da Matemática. Mas enquanto estava a estudar Engenharia, eu estava a morar numa casa de estudantes universitários e estava sem dinheiro também. Eu só consegui ir para Curitiba porque ganhei um prémio com dinheiro dos professores lá do meu colégio. Eles enviaram-me para lá, e comecei Engenharia. Entrei naquela casa com 400 estudantes universitários, em que você tinha alimentação, roupa lavada, cama, tudo o que você necessitava. No primeiro ano você tinha que trabalhar para poder pagar a casa: trabalhar no restaurante, na lavandaria, na fazenda, enfim. E depois no segundo ano já não precisava mais de trabalhar porque já era morador efectivo, se tivesse cumprido uma boa tarefa, não é? Mas pagava-se uma coisa mínima, eram 50 euros por mês para ter tudo isso. Aí, um dia eu estava no meu quarto, e algum estudante que estava atendendo na portaria a chamar-me, porque tinha um telefonema do interior do Paraná.
Sim, e até pensou que o telefonema trazia uma má notícia…
Eu já fiquei em sobressalto, porque podia ser notícias ruins da família. E cheguei lá, era o director do meu colégio falando: “Celso, o prefeito da cidade passou na câmara de vereadores uma lei em que vão pagar a casa de estudantes universitários até ao final do seu curso”. Não precisava de pagar mais a casa de estudantes. Mas estava sem dinheiro, não tinha dinheiro. E aí, resolvi ir lá pedir ao dono do cursinho para me deixar fazer um super-intensivo de dois meses, porque eu iria fazer o vestibular de Medicina, com a tentativa de ficar nos dois primeiros lugares e ganhar a posição de professor. Era assim que os professores entravam no cursinho. Aí, entrei na Medicina e me transformei em professor de Física do cursinho, e no primeiro ano, dissecação de cadáveres… Cadáver em cima da mesa, todo estraçalhado porque já tinha servido os estudantes dos outros anos. O livro ali para identificarmos os músculos, e aquilo começou a me desgostar, aquela coisa de você decorar os 206 ossos do corpo humano… O próprio professor lá, que era uma sumidade; era um fenómeno, porque ele era um ortopedista famosíssimo, cirurgião. Tinha o seu carro, mas ele não conduzia; tinha um motorista, porque aquelas ruas de paralelepípedo na direcção, podia afectar a sensibilidade das mãos dele. Folclore, não é? E aí, com o esqueleto lá na frente, ia identificando os 206 ossos do corpo humano. E eu decidi desistir dos dois. Achava que iria para São Paulo fazer Física na USP.
Foi depois disso que surgiu a oportunidade de estudar Matemática?
É, nesse momento eu tive que sofrer uma arguição da minha mãe, ela chamou-me lá para o interior. Perguntou porque é que eu estava a desistir, disse que eu estava a rasgar dois bilhetes de lotaria. Foi um drama na família. Mas aí, um professor me convidou para eu ir para o Rio de Janeiro, para fazer um curso curto de dois meses. Eu fui e tive um desempenho que impressionou os directores do curso, e pediram-me para eu voltar no próximo ano, que eu não precisava de Faculdade nenhuma e poderia entrar directamente no mestrado. Pulei a Faculdade, fui para o mestrado e para o doutoramento, fiquei sete anos lá, fiz a tal descoberta, entrei como profissional da universidade. Agora, pensando em me aposentar, sempre com a leitura actualizada, enveredei pela Literatura, pela escrita, pela narrativa.
Uma das principais mensagens de A Arte de driblar destinos é a importância da educação e do conhecimento para conseguir ir-se mais longe. No Brasil, as pessoas que nascem em meios mais desfavorecidos têm essa oportunidade de vingar, ou as possibilidades são muito desiguais?
As oportunidades são muito desiguais, porque a gente tem um sistema público e um sistema privado. É interessante, porque na época em que eu fiz os meus primeiros aprendizados, o sistema público era muito bom. Teve uma certa deterioração, actualmente o sistema público brasileiro está muito fraco. O sistema privado está muito forte, acontece inclusive uma inversão, porque o sistema público antes da universidade é fraco e o sistema privado é forte. Aí, quando vai concorrer na universidade que é pública, entram os estudantes do privado porque eles são mais fortes. Então, quer dizer, o sistema público é fraco no começo e depois é forte porque a universidade brasileira é bastante forte na pesquisa, no ensino, nessas coisas todas. Mas a questão, primeiro, é a do acesso à escola, não é? O acesso é muito desigual.
Nem toda a gente consegue ter as mesmas oportunidades…
Exactamente. Mas antigamente a situação era pior, porque actualmente a gente tem um programa que ajuda as pessoas em condições de pobreza extrema. Chama-se Bolsa Família, que dá 120 euros por mês para as famílias mais pobres, e dá mais 30 euros para cada criança, até três crianças com menos de cinco anos. Então, há um programa que é um combate à pobreza. Em 1960, nenhum desses programas existia. Era uma coisa muito difícil você ter as classes desfavorecidas na universidade.
E prosseguiu os estudos muito por causa da importância que a sua família dava à Educação?
Exacto, quer dizer, é também outra obsessão da família. O meu pai admirava muito as pessoas letradas, e os advogados. Porque tem essa cidadezinha pequena, mas tinha outra maior do lado, onde era a Comarca. Então, a Comarca era onde tinha o juiz, o delegado. Porque nesses lugarzinhos pequenos não tinha nem delegado; o delegado era um sujeito que recebia uma incumbência de cuidar da ordem. Mas ele admirava muito aquele júri, sabe, aquele jurizinho que uns advogados se batem, um acusando e outro defendendo o réu de um assassinato. Toda aquela cena, tem todo aquele drama que é contado ali. Ele gostava muito desse teatro. Então, queria muito que eu fosse advogado. Filho advogado seria bom [risos].
[risos] Mas não quis ir por aí…
Não, por falta de vocação também. Na época em que eu estive diante da universidade, as três carreiras mais importantes eram Engenharia, Medicina e Direito. Então, quem gostava de números iria para Engenharia, quem gostasse de saúde iria para Medicina, e quem gostava das letras e do social, iria para Direito. Eram as três carreiras nobres.
Já que o título do seu romance fala em destinos, pergunto-lhe se, ao longo da sua vida, com todas as vitórias improváveis, reveses e reviravoltas que vivenciou, alguma vez sentiu que tudo acontecia de uma forma quase predestinada? Como se o destino tivesse um peso na forma como tudo se foi desenrolando? Bem sei que, por norma, os homens da Ciência não acreditam nestas coisas [risos]…
Eu acho que existe uma transcendência que nós não sabemos explicar, mas que podemos apenas perceber e sentir, não é? Então, do lugar de onde eu vim, essas coisas eram muito fortes. Existiam pessoas de “poder”. Num certo sentido, eu acho que a nossa vocação para a tecnologia vai empobrecendo o nosso poder, que não tem explicação, mas que é simplesmente um poder, de comunicar com a Natureza. A gente sabe que os indígenas, por exemplo, quando morre um companheiro, sabem que ele morreu naquele momento. Então, nesse lugar onde eu vivi, existia pessoas que tinham também essa capacidade de sentir as coisas dessa maneira. Por exemplo, geralmente os animais, quando se machucavam por algum problema, a ferida infectava e criava bicho; os bichos habitavam lá e começavam a comer aquela carne em putrefacção… E tinha pessoas que eram os benzedores. E eles chegavam lá e benziam os animais, e aquelas bicheiras todas caíam no chão sem nenhum remédio. E outro personagem – que eu não usei porque senão o livro teriam sido 500 páginas –, era uma pessoa que conversava com as cobras.
Conversava com as cobras?
É, ele pegava a cobra, botava no embornal e levava para casa. O meu avô tinha uma certa extensão de terra onde tinha uns boizinhos e eles começaram a morrer, porque a cobra picava no focinho. Se a cobra picar na perna, o animal não morre porque tem muito sangue para diluir o veneno; mas se pica no focinho, é uma zona muito irrigada, então espalha-se muito rapidamente e o animal morre, especialmente se for um animal jovem. E estavam morrendo. Aí, ele chamou o compadre dele, o nome dele era Dentinho Queijo, não sei porquê. O Dentinho Queijo chegou lá e o meu avô explicou-lhe o que estava a acontecer, e depois foram andando pelo terreno e chegaram onde morava a cobra. Ele ficou ali um bocado a fazer as rezas dele e depois saiu uma imensa cascavel lá de dentro. Ele começa a fazer as rezas, a cascavel se enrodilhou. E ele disse ao meu avô: “Seu Pedro, podemos ir tomar café agora”. Aí, ele foi lá na casa, que ficava perto, foi conversar, colocar os assuntos em dia… Era assim que se vivia, porque havia um rádio a pilhas mas não tinha muitas comunicações do exterior. Aí, eles fizeram todos aquela sociabilidade, voltaram lá para o lugar onde estava a cobra, botou no embornal e foi embora.
Era uma espécie de encantador de cobras [risos].
Era. Assim como também havia um sujeito que ficava em cima da água, esse cara também existia.
[risos] Passou por algumas experiências quase sobrenaturais…
É. São experiências muito marcantes na infância e em parte da juventude. Existe um imaginário que eu – e isto já é uma teoria –, acho que esse avanço em direcção à tecnologia vai nos afastando dessa outra comunicação com a Natureza que a gente vai perdendo. Então, o Dentinho Queijo, no ADN dele, tinha a cobra. Porque nós somos animais, somos as árvores, somos os outros animais… Sei lá, eu por exemplo gosto muito de entrar de baixo de cavernas e buracos; talvez eu tenha um ADN também de lagarto, coisas desse tipo [risos]. É uma conexão com a Natureza, que é muito importante.